Afrodite sofre

Ela está doente, mas prefere não expor a doença e desfila com seu sorriso, já definido como sensual, ou sem sorrir. Chama atenção onde está, por enquanto, no Café das Letras, e para onde vai, o Museu do Nonsense — e mesmo ausente torna-se assunto das conversas e matéria-prima para fantasias inconfessáveis.
Ela é Afrodite, uma talentosa e premiada atriz que em temporadas recentes só representa personagens secundários. Nos últimos três, quatro anos, foi faxineira, telefonista, camareira e atendente em peças e novelas. Papéis que fora do palco, nesses mais de quarenta e menos de cinquenta anos, nunca precisou representar. Mas está doente, muito doente, e o médico, o doutor Hermes, diz que é melhor entrar em cena, mesmo sem ser protagonista, do que ficar em casa.
Afrodite paga a conta de dois espressos, uma água com gás e um cheesecake no Café das Letras, onde, em outras mesas, estão alguns ex-namorados, homens de uma noite apenas e outros com quem ainda não se relacionou, mas, a personagem sabe, são interessados em ter algo com ela.
Para a maioria, senão todos eles, Afrodite é uma mulher irresistível. “Uma delícia”, na definição de Teseu. Ícaro a considera linda, sexy e apaixonante. Ateu, Pigmalião diz que Afrodite é uma prova de que Deus existe. O desejo de Narciso não se materializou diante do corpo nu de Afrodite, considerada, por ele, uma deusa e com quem Narciso possivelmente não terá uma segunda chance.
Ela sai do Café das Letras e um homem que não a conhece entra no local, para diante da mulher que caminha lentamente e diz: Audrey Hepburn. Afrodite escuta, sorri e responde para o desconhecido: muito prazer, tudo bom? Afrodite, de fato, é parecidíssima com a Audrey Hepburn, e está satisfeita com o que é, apesar da doença que, pelo menos no presente, ela tenta esconder do mundo.
Segue pelas ruas e, em poucos minutos, chega ao Museu do Nonsense. Há seis ou sete mostras em cartaz, ela confere as descrições, não se interessa por nenhuma e decide, enfim, não comprar ingresso. O prédio do Museu já é uma obra de arte e a atriz caminha pelo vão pensando no título de uma das exposições, “A reinvenção do casamento”. São fotos de homens e mulheres com cinquenta anos a mais que suas esposas ou maridos.
Afrodite já foi cortejada por homens que nasceram duas ou três décadas antes, mas não tem interesse em um relacionamento desses. Midas, um influente produtor, com quase oitenta anos, deu a entender que, se eles namorassem, conseguiria papéis mais interessantes para ela — mas a atriz prefere representar personagens secundários ou ficar fora de cena a se envolver sem estar apaixonada, mesmo que o sujeito tenha a sua idade ou seja mais novo.
Eurídice, Aracne, Eco e outras amigas não entendem o motivo de Afrodite estar solteira. Mas elas não sabem que a atriz parecida com a Audrey Hepburn está doente, muito doente. A doença já ultrapassou o estágio inicial, em breve vão surgir dores inevitáveis e efeitos colaterais podem alterar a beleza que caracteriza e define Afrodite.
Afrodite está, agora, em uma avenida, por onde pretende seguir até cansar — gostaria imensamente que esse caminho representasse seu futuro: uma longa e sinuosa estrada, com paradas, cruzamentos, surpresas e, principalmente, fluência.

Conto inédito publicado na Revista Ideias de agosto de 2018.

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