Jéssica?
Milícias
locais usam um método possivelmente inédito em âmbito nacional.
Passam trotes em desafetos, até em pessoas que os líderes não
conhecem e apenas não simpatizam. Quem telefona não ameaça. Quem
atende não sabe que se trata de um aviso e, em geral, supõe que foi
engano.
Há
uma semana, milicianos ligam para o celular de Ramon.
—
A Jéssica está?
—
Aqui não tem ninguém com esse nome.
Ramon
conta para sua namorada, a Verônica, sobre a sequência de ligações.
Ela diz que pode ser brincadeira de amigo. Ele responde que amigo não
faz isso. Mas a namorada comenta que o Toba gosta de passar trotes.
—
O Toba?
—
Exatamente.
—
Será?
—
Ainda mais ele, um viciado em memes.
—
O quê?
Verônica
conta que, há três anos, duas estudantes, Lara e Jéssica, na
época, respectivamente com 14 e 13 anos, trocaram tapas em frente a
uma escola em Alto Jequitibá, Minas Gerais. Após a briga, Lara diz:
“Já acabou, Jéssica?”. Registrada em vídeo, a cena viralizaria
na internet.
Ramon
recebe ligações até no sábado e domingo.
—
Jéssica?
—
Não tem nenhuma Jéssica aqui.
—
Posso falar com a Jéssica?
—
Você ligou para o número errado.
Se
o sujeito que recebe ligações reclama ou reage demonstrando raiva
ou indignação, os milicianos avisam os chefes e, de modo geral,
aumentam a quantidade de trotes.
—
Jéssica?
—
Não tem Jéssica nenhuma aqui.
—
Jéssica?
—
Ei, Toba, pare com esse negócio.
—
Jéssica?
—
É você Toba, eu sei.
Toba,
o amigo de Ramon, não está envolvido na operação. Quem solicitou
trotes foi um dos chefes da milícia, o Sandalaje. Ele ignorava a
existência do artista plástico que expõe até no exterior e é
cultuado pela imprensa, por críticos e mulheres. Mas, no final de
uma noite, Sandalaje e Infinita conversavam, a televisão estava
ligada e um telejornal divulgou a mais recente exposição de Ramon,
“Gerúndio total”.
—
Interessante esse artista.
Sandalaje
fingiu não escutar, mas a frase de Infinita, “Interessante esse
artista”, incomodou o poderoso miliciano.
—
Quero falar com a Jéssica.
—
Por que você insiste?
—
Chame a Jéssica.
—
Não tem nenhuma Jéssica aqui.
Ramon
tenta bloquear, mas aparece a opção de número inválido ou
inexistente. Recebe ligações de dezenas de telefones celulares e
fixos que, não sabe, são aparelhos da milícia.
O
telefone celular do artista recebe cada vez mais chamadas, inclusive
à noite e de madrugada. Sandalaje acredita que Ramon pode ficar
assustado, em pânico e, nesse estado, talvez deixe de criar e
desapareça, especialmente da mídia.
A
Infinita pediu ao amante para ir a uma exposição e até comprar uma
obra do Ramon.
—
Jéssica?
—
Só tem Enforcado.
—
Ah?
—
O Enforcado será você.
Sandalaje
fica sabendo que Ramon reage agressivamente aos trotes, antes de,
enfim, não atender mais o telefone. Diferentemente do que esse chefe
da milícia acreditava, o artista não se amedronta e passa a criar
com mais intensidade. Ramon, inclusive, prepara uma nova exposição
— sobre possíveis estados mentais de quem encomenda e daqueles que
passam trotes telefônicos.
E
também escreveu um texto sobre o assunto, com o seguinte título:
“Jéssica?”.
Conto inédito publicado na revista Ideias 200, junho de 2018.
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