Fantasmas


Estou dentro da van e o motorista faz mais uma ultrapassagem na pista que vai e vem e o carro que vinha em sentido contrário teve de sair para o acostamento e, assim, evitar a colisão. Já é a sexta, ou a sétima?, situação tensa que acontece desde que saímos da cidade.

Quando pedi a porção de paca, desconfiei que o roteiro estava com problemas. O garçom japonês que trazia as cervejas não tinha olhos. Eu bebia, foram seis garrafas de 600 ml, e não me sentia bêbado. Paguei a conta, saí daquele bar e voltei para o quarto do hotel. Ao deitar e apagar a luz, suspeitei que mais alguém também dormia nas duas camas vagas no quarto onde eu estava instalado.

Chove e tem neblina. A van deixou a cidade de madrugada, já passou a hora de almoçar e o motorista ainda não parou. Ele acelera e realiza manobras que podem provocar acidentes. Um dos passageiros pediu para ele seguir devagar. Outros três rezam, de mãos dadas e em voz alta. Fechos os olhos, tento dormir, mas não consigo. Seja por causa das freadas, como essa, as anteriores e também por que a sensação de que não vamos sair vivos desta viagem aumenta a cada quilômetro.

Sou engenheiro de som e fui contratado pela prefeitura para resolver o problema de acústica do teatro municipal, que seria inaugurado em uma semana. Solicitei a presença da orquestra sinfônica, de uma banda de rock e de um compositor. As apresentações foram realizadas individualmente. No quarto dia, encontrei uma solução. Fui elogiado por autoridades, me chamaram de gênio, apesar de que esses trinta anos de trabalho contínuo me fizeram, não genial, mas experiente.

O voo foi cancelado, não havia previsão para decolagem e a companhia aérea contratou o serviço de uma transportadora terrestre para conduzir os passageiros que tinham compromissos ou pressa para chegar a seus destinos. Eu poderia esperar, havia a opção de permanecer em um hotel até que um outro voo fosse autorizado. Mas escutei uma voz no sistema de som do aeroporto anunciando que os passageiros do voo cancelado deveriam se encaminhar ao hall, e fui até lá. Em minutos, uma van sairia dali, dentro da qual entrei, conduzida por um sujeito que parecia determinado a assassinar todos os que estivessem no veículo.

Durante o jantar que antecedeu a partida, o sujeito que estava sentado ao meu lado na mesa disse que já contava histórias para o seu cachorro quando era criança. Antes de chegar ao restaurante, eu caminhava por uma rua, escutei uma conversa na qual uma das vozes disse que traição de amigo dói mais do que de mulher. O discurso das pessoas daquela cidade parecia ser elaborado anteriormente, talvez por um roteirista. As frases não ficavam pela metade, tudo tinha começo, meio e fim.

Me convidaram para permanecer mais uns dias, mas eu disse que tinha compromisso. Alguém falou que o avião poderia não decolar e, de fato, fatores climáticos impediram a decolagem. Sigo dentro dessa van, mas gostaria de pedir para o motorista parar para eu descer e esperar, na beira da estrada, pelo fim da neblina e da chuva, vivo.

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Ficção publicada na edição de setembro de 2013 da revista Ideias (Travessa dos Editores).


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