A noite está velha

            Claudio desce as escadas do Bar Bashô e, no palco, um sujeito, com bigode, diz:
            – Berinjelas/ voam/ pelas janelas.
            Mais de cinquenta pessoas aplaudem. Os gritos podem ser ouvidos na rua, onde um sujeito parecido com o Ignatius J. O'Reilly vende cachorro quente.
            O concurso semanal de imitadores do Paulo Leminski reúne dezenas de pessoas. Em algumas noites, mais de cem lotam o espaço subterrâneo onde é possível beber vinho, consumir sopa e flertar.
            – Ananias/ come até mesmo/ melancias.
            Palmas para a performance verbal de um outro sujeito, com bigode, que pula do palco, pisa em cima de uma mesa e desaparece.
            Claudio pede uma Kaiser Gold, bebe dois goles, olha ao redor e se dá conta de que no Bar Bashô todos usam bigode, até as mulheres.
            Uma mulher está com o microfone nas mãos, mas ela não declama:
            – Agora, é a segunda fase. Não basta apenas declamar. É necessário dar provas multimídias, transar duas ou mais artes ao mesmo tempo. Let's go.
            Aplausos.
A maior parte do público começa a gritar:
            – Paco, Paco, Paco.
            Fãs do Leminski entram e saem do palco, mas a performance com mais duração, que parecia não ter fim, foi a de Paco.
            Ele entra em cena gritando nhoque, queijo, rolmops, churras, churros, alcaparras. Em uma das mãos, um frango assado, que o artista devora em pouco mais de um minuto.
            Aplausos.
            Paco sorri, e as luzes mostram que a sua barba está ensopada de gordura, além de restos de comida.
            Começa a fazer polichinelos. Aplausos. Ele para. Aplausos. Liga um aparelho de som e canta uma canção que, avisa, ser de sua autoria, na qual também faz menção à comida. Gesticula como se fosse um rapper. Aplausos.
            Claudio está na oitava, nona Kaiser Gold e não sabe se Paco faz menção ao Leminski ou parodia com nonsense o Artista da fome, do Kafka.
            – “Se bobear, como até rolha/ misturada com kiwi/ em meio a plástico bolha”. O público aplaude e Paco sai de cena carregado.
            A ficha de consumação de Claudio tinha anotadas 12 Kaiser Gold's quando ele subiu ao palco. Se era pelo fato de não ter bigode ou devido a sua estreia no porão do Bar Bashô, ele não sabia o motivo, mas houve estranhamento traduzido em silêncio.
            – Boa noite.
            Silêncio.
            – “Mano, a noite está velha”.
            Ninguém se manifesta após Claudio declamar a frase, título de um livro.
            – “Viver é prejudicial à saúde”.
            Silêncio.
            Claudio escuta ruídos, e tem a impressão de que alguém vaiou.
            – “Comendo bolacha maria no dia de são nunca”.
            Após verbalizar a palavra nunca, Claudio escuta, de fato, uma vaia.
            O ruído aumenta.
            Ele se retira do palco sem olhar para trás, segue por uma das portas que dá acesso à lateral do porão, conversa com os seguranças e, antes de sair do Bashô, se dá conta de que dezenas de sujeitos com bigode que estavam no concurso semanal de imitadores do Paulo Leminski agora caminham em sua direção.
            Claudio se aproxima do Ignatius J. O'Reilly, e diz:
            – Acho que estou encrencado.
            Ignatius J. O'Reilly, ou o sujeito que se parece com o Ignatius J. O'Reilly, termina de mastigar um pedaço de cachorro quente, e pergunta:
            – Qual o problema?
            Os cinquenta, ou mais, sujeitos com bigode saem do Bar Bashô e um deles vê Claudio ao lado do carrinho de cachorro quente:
            – Olha ali.
            Ninguém tem certeza a respeito do que aconteceu. A versão da dona do Bashô é diferente do que foi relatado por um oficial da polícia. Miguel Bakun, vizinho do bar, conta que Ignatius J. O'Reilly defendeu um sujeito sem bigode de uns cinqüenta ou mais bigodudos. “O homem que vende cachorro quente bateu com as suas patas em alguns frequentadores do bar, mas ninguém saiu ferido”, repete Bakun nas entrevistas que concede até hoje.
            Em meio ao confronto, Ignatius J. O'Reilly abriu uma lata de salsichas e jogou o conteúdo em cima dos bigodudos. Os frequentadores do concurso semanal de imitadores do Paulo Leminski começaram a comer as salsichas, que eles chamam de vina, mesmo as que estavam no chão.
            – Estão com os bigodes encharcados de vina.         
            Quem disse a frase foi Ignatius, convidando Claudio para seguir em direção ao centro da cidade. No caminho, o vendedor de cachorro quente afirmou, mais de uma vez, para Claudio:
            – Você é o verdadeiro leminskiano. O leminskiano de verdade não imita o Leminski, não usa bigode nem pratica trocadilhos. O leminskiano verdadeiro é o anti-Leminski.
            Variações dessas frases foram enunciadas por Ignatius. Após agradecer pela ajuda, pela companhia, Claudio se despede com uma frase que ele já havia pronunciado no porão do Bashô:
            – Mano, a noite está velha.


Texto publicado originalmente na página 47 da revista Ideias, edição 137, março de 2013. A ilustração é do Marciel Conrado.

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