Jardim Paraíso


Já estou sentado em um banco, são duas vagas, ocupo o espaço próximo à janela neste ônibus que segue para o Jardim Paraíso. São 40, 50 minutos daqui até lá – e não quero pensar, fazer planos nem encontrar enredos na memória. Por isso estou com esse livro, de um autor contemporâneo.

Hoje flutuo e meus pés não flertam a superfície imediata comum a todos. Adiar. A aterrissagem será em algum depois. A vontade de deixar rastros é ausente. O intervalo entre a partida anterior e o próximo porto será o de uma noite sem sonhos. Ou de um pesadelo que prefiro esquecer.

Seis frases e me sinto quase igual ao sujeito que narra essa prosa. Gostei. Se um livro me leva a outro cenário, gosto. Esse, o que leio agora, me faz voar e tem uma bossa diferente de tudo o que conheço. Fecho as páginas, olho pela janela. Mas é a mesma paisagem do ano passado, de ontem, e essa ficção me conduz a um futuro que eu não conhecia e que começo a desejar.

Laços que até há pouco pareciam permanentes se rompem e outros nós se fazem, há costuras que não nos damos conta,segundo após minuto a colagem se dá e o império de olás e ois aponta para configurações que em algum amanhã podem deflagrar noturnos impensáveis no agora.

– Pessoal, estou aqui.
– Que é isso?
– Peço um pouquinho de.
– O que está acontecendo?
– Ei, pessoal, eu poderia estar roubando, assaltando, matando, mas estou aqui.

Ele segue a falar, interrompe o fluxo de cada um, e todos estão, por exemplo, um está cansado, outro a pensar nas dívidas – também me cansei e lembro de contas, mas quero esquecer e daí que viajava naquela prosa.

– Vocês podem segurar o pacote sem compromisso. Faço parte de uma casa de recuperação que trata de pessoas com todo tipo de dependência química.

É um vendedor, sabe falar e fala, e um colega passa pelo corredor a entregar pacotes, onde há adesivo, caneta, borracha e um papel com o telefone e o endereço da instituição.
Tento mas mão não consigo retomar a leitura. O vendedor segue a falar, o colega dele passa e confere quem vai, e quem não vai, pagar. Há dinheiro nos bolsos da minha calça. Encontro moedas, entrego ao cobrador dos pacotes e, por isso, posso ficar com aquele que já estava em minhas mãos.
Outros passageiros também pagam e ficam com os pacotes. O ônibus segue e o vendedor e o seu colega descem em uma das paradas. Abro o livro e nem completo a leitura de um parágrafo. Outra voz avisa que nós, passageiros, devemos prestar atenção. Só por alguns instantes.
É um vendedor de lixas de unha.
Ele segue a falar e não há mais leitura. Procuro moedas nos bolsos e uma mulher também pede atenção, são salgados que ela vende para, como diz, pagar as contas.
Vou comer um ou dois pasteis antes do ponto final.

Ficção publicada na edição de junho de 2012 da revista Ideias. Desenho-tendência-colagem de Marciel Conrado.

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