O abismo de um sonho

Um, dois, três toques na porta. Valter Souza não espera ninguém, e segue a digitar o texto no computador. Menos de trinta segundos e uma, duas, três batidas na porta. O texto travado há dias parecia decolar, mas não. Outros um, dois, três toques na porta. Valter caminha e pelo olho mágico vê dois homens que não conhece. Abre a porta.

– Bom dia.
– Bom dia, diz um dos desconhecidos. O outro permanece em silêncio.
– Então...
– O senhor Valter Souza está?
– Depende...
– Precisamos saber se o senhor Valter Souza se encontra.
– Bom...
– O senhor é o Valter Souza?
– É assim que fui batizado.
– Pois, então, considere-se preso.
– Preso?
– O senhor tem o direito de permanecer em silêncio. Tudo o que disser pode ser usado contra a sua pessoa.
– Por quê?
– Por muita coisa, senhor Valter.
– Por exemplo?
– O senhor está se fazendo passar por escritor, e temos absoluta certeza de que se trata de propaganda enganosa.
– O que é isso?
– Exatamente o que o senhor escutou.
– Mas quem são vocês para dizer que não sou escritor?
– Somos funcionários do Departamento de Críticos, Resenhistas e Jornalistas que Escrevem Sobre Literatura.
– Isso existe?
– Tanto existe que somos funcionários do DCRJESL e temos poder de deter e tirar de circulação falsos escritores.
– E...
– O senhor está preso por escrever e publicar obras supostamente de ficção, mas que não passam de baboseira.
– O que é isso?
– Senhor Valter, não complique as coisas.
– Complicar?
– Vou explicar ao senhor uma coisa.
– Explique.
– Senhor Valter, anteriormente, para a legislação brasileira, o exercício ilegal de uma profissão só era considerado crime no caso de médicos, farmacêuticos e dentistas. Para todas as outras profissões, tratava-se apenas de contravenção penal.
– Está vendo, sou escritor, portanto...
– Recentemente, o Departamento de Críticos, Resenhistas e Jornalistas que Escrevem Sobre Literatura conseguiu legalizar a profissão de escritor, poeta e ficcionista.
– E o que isso significa?
– Que não se pode mais exercer ilegalmente a profissão, como o senhor faz. Ser escritor sem, de fato, ser escritor, é crime. Por isso, o senhor está preso.
– Não acredito.
– Acredite.
– Ser escritor sempre foi o meu sonho.
– O senhor sonhou errado. Esse sonho não é para o senhor. Nem bigode o senhor tem, Valter.
– O que você falou?
– Escritor tem de ter bigode. Se tiver barba e bigode, melhor ainda.
– Era só o que faltava.
– Falta muita coisa para o senhor ser escritor, Valter. Além do bigode, ou bigode e barba, falta companhia. Escritor tem de fazer parte de alguma turma, e o senhor é um solitário.
– Escritor tem de ser enturmado?
– Escritor, senhor Valter, tem de se fazer de difícil, enunciar discurso incompreensível, viver à beira de um siricutico e estar antenado com as últimas tendências.
– Quem decretou essas coisas sobre ser escritor?
– O Departamento de Críticos, Resenhistas e Jornalistas que Escrevem Sobre Literatura.
– Isso só pode ser brincadeira.
– Não é brincadeira, não, senhor Valter. E tem mais.
– Tem mais?
– Esse apartamento, que o senhor comprou para escrever ficção, será confiscado.
– Confiscado?
– Desde já.

Os dois funcionários do Departamento de Críticos, Resenhistas e Jornalistas que Escrevem Sobre Literatura, o que falou com ele e o que permaneceu em silêncio, seguram Valter Souza pelos braços e o carregam até o elevador. As portas se abrem, os três entram, e as portas do elevador se fecham.

Ficção publicada na edição maio de 2012 da revista Ideias.

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