Nada exemplares

Olho para frente, azul. Para cima, também. Fecho os olhos. Não sinto vontade de fazer nada, mas bebo um gole de água de coco. Há uma ilha no horizonte, logo ali, em meio ao mar, no litoral do Paraná.

Estou aqui, na areia, sentado em uma cadeira, embaixo de um guarda-sol, e gostaria de esquecer que existe facebook, comentários, postagens, botão para curtir e fotos com citações.

Cinco ml de protetor solar nos braços, nas pernas e nos pés, e outros ml para o rosto. Um gole de água de coco, outro de refrigerante ou cerveja. Fecho os olhos. Ainda não esqueci o facebook.

Antes da internet, e do facebook, se popularizar, trabalhei em redações de jornal. Há quanto tempo? Não lembro. Mas, agora, ao beber água de coco na beira do mar, me dou conta de que atuei por um breve período como repórter policial.  

A ronda, como é chamada a rotina de perambular por delegacias em busca de notícias, evidenciou a minha incapacidade jornalística. Os fatos estavam lá, nos boletins de ocorrência. O que não havia era um repórter, e sim eu, o gauche no local inapropriado.

Nas manhãs dos sábados, a primeira tarefa era seguir até o Instituto Médico Legal e contar, e analisar, a quantidade de crimes registrados da noite anterior até aquele momento. Eu pedia a lista de atestados de óbito e anotava, em um bloco de papel, os dez homicídios, os quinze latrocínios e os dezessete acidentes fatais do trânsito.

— Ei, aqui não tem morto pro teu jornal.

Quem enunciou a frase foi uma mulher com no mínimo duas décadas de vida a mais do que eu. Ela disse, para mim, “Ei, aqui não tem morto pro teu jornal”, na primeira ou segunda manhã de sábado em que passei a fazer a ronda no IML. 
   
Aquela mulher, uma repórter veterana, acendeu e fumou um cigarro. Perguntou meu nome, quis saber se era a minha primeira vez ali. Policiais chegaram, a cumprimentaram e começaram a conversar com ela. Eles se afastaram de onde eu estava, olhavam para mim, trocavam palavras, gesticulando, e riam, a gargalhar.

— O teu jornal quer morto ilustre, e aqui só tem treta. Menino, hoje você vai ficar sem notícia.

Aqui, dentro do cartão-postal, é mais fácil, apesar dos 30ºC, a brisa refresca, o mar está a poucos passos, bebo mais um gole de água de coco, a cerveja acabou? E o jornalismo? Da editoria policial migrei para o caderno de agricultura, passei uma temporada no geral, um tempo no esporte, então pendurei as chuteiras, carpi o pé, deu pra mim.

O número de suicídios, sobretudo de mulheres, era igual ou superior ao de assassinatos e outros crimes, mas os jornais não divulgavam essas informações. Por quê? Uns diziam que notícias a respeito de suicídios poderiam estimular o ato, outros argumentavam que uma lei proibia a divulgação.

Bebo mais um gole de cerveja, outro de água de coco e, dentro da sacola, vejo um livro de contos do Enrique Vila-Matas. Suicídios exemplares. Foi o título da obra que me fez lembrar o meu fracasso no jornalismo e o universo da reportagem policial?      

Por que lembrei dessas coisas? Eu só queria relaxar, esquecer o facebook e o mundo. Bebo mais um gole de água de coco, outro de cerveja e não me incomodo com os efeitos desses 30ºC.

Crônica publicada na edição 124 da revista Ideias, da Travessa dos Editores, fevereiro de 2012.

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