O rock move o mundo

Você já desejou voar. Eu também. É sonho antigo reviver o feito de Ícaro, “vontade ser baitaca”, como escreveu Newton Sampaio. Asa delta. Paraquedas. Paraglaider. Parasail. Há trampolins que simulam a nossa falta de asas.

O voo comercial, no entanto, já não satisfaz o sonho, o desejo, a ambição humana de desafiar a lei da gravidade. Essas decolagens e aterrissagens quase não provocam taquicardia, a não ser em exceções e emergências. É relativamente fácil e, em alguma medida, barato estar hoje em Curitiba, amanhã em Lisboa e depois em Tóquio, apesar das filas de espera em aeroportos, da barra de cereal e do suco de manga no copo de plástico durante os percursos.

Mas em São Leopoldo, Colombo ou Patos de Minas, por mais confortável que se encontre em terra firme, asfalto ou cobertura, o homem tende a lembrar que poderia ter asas e, rosebud, vai procurar ponte ou túnel de acesso para viajar pelo céu.

Não sei se você já experimentou, mas uma das mais interessantes possibilidades para levitar e seguir por aí é tocar em uma banda de rock. Quem conhece, e sorveu o sabor, sabe que a aventura é intensa, inesquecível, incomparável.

E para esse voo acontecer não é necessário muito. Basta uma garagem com uma, duas, três tomadas, uma bateria, um contrabaixo, uma guitarra, microfones, um, dois, três amplificadores. Pronto. Mas o fundamental, e isso sim é fundamental: o sangue precisa ser novo. O rock acontece com e por meio de jovens. A inexperiência, a irresponsabilidade e a fúria juvenil são os motores do rock.

– E o rock é o que move as cidades.

Quem disso isso foi o Gadu, conhece? Ele é o namorado da Pulga. A Pulga é uma ex-groupie. Antes de conhecer o Gadu ela só namorava guitarristas, baixistas, bateristas e vocalistas de bandas de rock. Pulga ficou com todos os roqueiros do circuito de bares, palcos e porões da cidade. “Daí, cansei”, costuma repetir. Uma noite, na verdade já era madrugada, e a Pulga, sozinha, estava à beira de um siricutico. Pensou em se jogar no lago do parque, mas olhou para o lado e alguém sorria. O homem, vinte anos mais experiente do que ela, se apresentou como Gadu e, desde então, eles estão juntos.

– Os roqueiros não sabem nada e não são de nada, sabia?

Quem falou isso foi a Pulga, e olhe que a moça deve saber o que diz por ter convivido, de perto, e por anos, com roqueiros. Fui, acho que sou e sempre serei roqueiro, e até que concordo com a Pulga. Sei quase nada. Mas independentemente disso, é inegável que o rock proporciona voos.

– No entanto, atingir, fazer sucesso pode ser prejudicial. No rock, para voar, é importante estar com amigos tocando em garagens, quartos ou porões.

Quem elaborou o argumento do parágrafo anterior foi o Gadu. Ele trabalha em um serviço reservado, dizem que é contracomunicação e, quando tem certeza de que não há gravador ligado, repete que é o rock que move o mundo.

– Mas e a energia elétrica, os alimentos, os raios de sol, o luar e o efeito Malbec?, pergunto.

– Nada disso, Marcio, responde o Gadu. São os roqueiros, com overdrives, acordes dissonantes em mil alto-falantes que movem as cidades. Tanto que muitos acabam perdendo o chão, experimentam o vazio agudo e flertam com o suicídio.


* * *

Abandonei a guitarra, e o rock, aos 27 anos, idade na qual muitos, Hendrix, Janis e Morrison, tiveram a trajetória interrompida. Curioso. Mesmo no meu caso, mero roqueiro sem reverberação além da garagem, algo ruiu. Perdi energia, a madrugada apagou.

– É a maldição do rock. Uma vez roqueiro, você está perdido.

Foi o Gadu quem me explicou, e ele ainda disse o seguinte: Voou, Marcio, é como o Ícaro; vai querer voar pra sempre. Se alguém abandona as decolagens, como você fez, vai passar o resto da vida em busca das asas abandonadas em alguma garagem.

Ora direis, ouvir estrelas; cansei. Os voos me entendiaram. Agora quero mesmo é caminhar, apenas isso: flanar por ruas, esquinas e becos. Mas tenho um filho, o Vitor, que completa três anos neste outubro e, sabe, o presente foi um par de asas, ou melhor, uma guitarra, que ele pega todo dia e, pelo sorriso no rosto, já ensaia sobrevoar oceanos, vales e estrelas.

Crônica publicada na revista Ideias, da Travessa dos Editores, edição de outubro de 2011.

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