Toda sorte de azar
Por
anos Tácito teve a certeza de que, no início, era apenas o som de Robert
Johnson. Depois o tudo, para ele, também estava em Eric Clapton sempre blues.
Ouviu e sentiu a força em um anônimo que tocava por um, dois, cinco, dez reais
na Paulista. Recentemente o fenômeno aconteceu em Curitiba, por segundos,
daquele jeito, o único possível.
Mas,
evidentemente, as opiniões variam.
Para
uns, Bach é o todo, para dois o todo está em Miles Davis ou em Charlie Parker –
para três o que há é o canto de Milton Nascimento, Nina Simone e Baby do
Brasil. Milhares preferem as canções dos Beatles, outros milhares apreciam o
repertório do Queen, centenas e centenas e outras pessoas não sabem se o
eterno-maravilhoso foi e é traduzido magicamente por Hermeto Pascoal ou se, de
fato, mágicas e eternas são as composições e o canto do Nei Lisboa.
Coincidentemente,
Tácito ouvia uma canção do Nei Lisboa quando, por telefone, foi demitido da
banda da cantora Xaxim. A artista cancelou todos os músicos que a acompanhavam
desde a sua estreia, há sete anos. Por motivos variados, incluindo a sorte,
Xaxim tornou-se requisitada, inicialmente em palcos do país – depois viajou
para o Japão, Islândia, Equador, Canadá, África do Sul e Nova Zelândia.
Guto,
o namorado de Tácito, sabe e aceita a mediocridade musical do companheiro.
Gentilette, Betinho, Tchupipou e Polza, músicos que tocavam na banda da cantora
Xaxim, conhecem as limitações de Tácito. A cantora Xaxim sempre soube que
Tácito não era, nem é, genuinamente um músico, mas ela e Tácito eram amigos, e
ele participou do projeto por causa desse vínculo, apenas pela grande amizade e
consideração que a cantora Xaxim tem, ou teve, por ele, Tácito.
Nesta
irreversível transição a cantora Xaxim precisa de músicos profissionais,
principalmente para elaborar e gravar o próximo repertório. Gentilette,
Betinho, Tchupipou e Polza não são limitados e ruins, como ruim, limitado e
medíocre musicalmente é Tácito. Mas, enfim, eles, a exemplo do Tácito, também
estão fora dos planos da cantora que busca outras notas, vibrações e azuis.
O
azul e triste Tácito, musicalmente blues de menos, não consegue traduzir em
música o que percebe e sente. Deveria contar isso ao Jacob, o terapeuta. Tácito
poderia assumir que, apesar da dedicação, não é músico, mas deve dizer ao Jacob
que é vítima, amigo desde sempre da cantora Xaxim, agora famosa e sem espaço
para ele, Tácito, em sua agenda e novidades.
Para o Lolilow, um de seus amantes, Tácito vai dizer que precisa de férias. Para a Camille, a sua biéféf, talvez diga que vai se reinventar em nova profissão. Para o pai, a mãe e a irmã, pode comentar que, na banda da cantora Xaxim, teve toda sorte de azar e está carente de retiro, repouso, banho de mar, passes e outros axés para seguir bem distante da música que identifica em músicos, mas que ele, Tácito, nunca experimentou em manifestação visceral.
Meu conto publicado na Revista Ideias, em abril de 2020, com ilustração do Vitor Mann.
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