O mel do melhor
Antologias reúnem textos que muitas vezes são o primeiro momento de revelação literária para um futuro
leitor — mas elas têm prazo de validade [Conteúdo publicado no Jornal Cândido 120, julho de 2021].
Marcio Renato dos Santos
No início de agosto, a editora
Reformatório promove — por meio de lives — o lançamento de Geração 2010: O Sertão É o Mundo, antologia que reúne 25 autores
brasileiros contemporâneos. Organizada pelo escritor e doutorando na
Universidade Livre de Berlim Fred Di Giacomo, a publicação é uma espécie de
continuidade de outras duas reuniões de textos literários, Geração 90: Manuscritos de Computador (2001) e Geração 90: Os Transgressores (2003), ambas organizadas por Nelson
de Oliveira, ainda hoje discutidas. Mas esta nova iniciativa tem (e nem poderia
ser diferente) as suas peculiaridades.
Fred Di Giacomo selecionou escritoras e escritores
que nasceram fora de capitais, segundo ele, que anteriormente dominaram a cena
literária do país, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e
Porto Alegre. Outro critério do antologista: a repercussão da obra do autor deve
ter acontecido a partir de 2010, independentemente da idade — para exemplificar
Giacomo cita Maria Valéria Rezende (ela publicou, por exemplo, o romance Vasto mundo em 2001, mas passou a ser reconhecida
com prêmios na última década). Por fim, Gioacomo tinha a meta de que menos a metade
de Geração 2010: O Sertão É o Mundo
fosse ocupada por mulheres — foram escolhidas 13 autoras e 12 autores.
"Além de território, tempo e
espaço, equidade de gênero, procurei autores que tivessem qualidade literária.
Sei que é um conceito subjetivo, mas busquei nomes que estavam fazendo um bom
trabalho, além de abrir espaço para indígenas e o imaginário LGBTQIA+",
diz o organizador da antologia que reúne, entre outros, Ailton Krenak, Débora
Ferraz (vencedora do Prêmio Sesc 2014 na categoria romance), Itamar Vieira
Junior (autor do premiado romance Torto
Arado), Krishna Monteiro, Mariana Basílio (vencedora do Prêmio Biblioteca
Digital 2020, da BPP, categoria poesia), Micheliny Verunschk (vencedora do
Prêmio São Paulo de Literatura 2015 na categoria melhor romance de autor
estreante acima de 40 anos), Nara Vidal e Raimundo Neto (vencedor do Prêmio
Paraná de Literatura 2018, da BPP, categoria conto).
Outra
Geração 2010
Nelson de Oliveira avisa que começou a organizar
uma antologia da Geração 2010. Ele colecionou obras literárias brasileiras
publicadas durante a década passada e agora realiza a seleção. A exemplo do que
fez nos dois livros da Geração 90, e também em Geração Zero Zero: Fricções em Rede (2011), vai escolher autores que
têm mais de uma obra publicada. Por enquanto apenas dois nomes estão, como Oliveira
faz questão de salientar, "garantidíssimos": Aline Bei e Rafael
Sperling. "A literatura deles me arrebatou", confessa o autor, entre
outros livros, do romance Subsolo
Infinito (2000).
A futura antologia da Geração 2010, que
Oliveira prepara, ainda não encontrou editora. "Não contatei nenhum
editor. Vou fazer isso quando terminar a seleção", informa. Ele organizou
outras duas antologias: Fractais
tropicais (2018) e Mundo-vertigem
(2020) — esta assinada como Luiz Bras, um dos pseudônimos do escritor paulista.
A primeira, de acordo com Oliveira, reuniu “o melhor da ficção científica
brasileira”, enquanto a segunda selecionou “o melhor da ficção fantástica
brasileira contemporânea”.
Em 2017, assinando como Luiz Bras,
Oliveira também organizou a antologia Hiperconexões:
realidade expandida, com poemas sobre o que ele define como revolução
pós-humana (tecnociência e biotecnologia). Essas as três iniciativas, os livros
das Geração 90, o da 2000 (Zero Zero) e o da 2010 são, para Oliveira, antologias-manifestos,
ou seja, indicam um programa político-literário. "É nesse sentido que o formato
antologia tem valor para mim. Não importa se o recorte é cronológico,
geracional ou temático. Aprecio apenas as propostas que expressam uma verdade
artística e filosófica", afirma.
Coleção
de flores
A professora da UFMG Sabrina Sedlmayer
explica que a modalidade textual denominada antologia possui longa tradição e
faz parte da formação educacional e cultural do leitor do Ocidente. Tanto em
grego, anthologias, como em latim, florilegium, as denominações possuem o
mesmo significado: trata-se de uma “coleção de flores”, uma guirlanda capaz de oferecer
exemplos representativos de um determinado período, temática ou autoria.
Professor aposentado da UERJ, visitante sênior
na Unifesp, o antologista Italo Moriconi acredita que a maior importância de
uma antologia é servir como porta introdutória a um universo literário. "Há
antologias de vários tipos, como, por exemplo, as temáticas, em contraste com
as antologias abrangentes, abarcando períodos históricos ou gêneros
específicos. São instrumentos de ensino tanto fora quanto dentro do sistema
escolar ", analisa, acrescentando que, para muitas pessoas, a leitura de
uma antologia é o primeiro momento de revelação literária.
Dialogando com Moriconi, o professor da
UFRGS Luís Augusto Fischer diz que a antologia bem feita cria um
patamar de conversa letrada e estabelece um cânone. "Uma antologia
seleciona e, muito mais importante, dá a ver, ou melhor, dá a ler. Isso num
sentido geral, pensando no leitor genérico", teoriza. Fischer tem a
convicção de que, considerando o sistema de ensino como um meio decisivo para
formar leitores, as antologias crescem ainda mais de importância, "porque elas
podem definir o gosto de uma época, de uma região".
Recortes
de cada presente
O crítico literário e professor da
Unicamp Alcir Pécora compreende uma antologia como resultado do esforço de
construir algum tipo de amostra textual relevante para alguém ou para um grupo
social no âmbito de sua área de interesse. "Pode significar também uma
forma de dar publicidade a determinado conjunto de obras que ainda não têm
reconhecimento público", observa.
Pécora afirma que esse tipo de
publicação coloca o arquivo do passado (próximo ou distante) a serviço de uma
interpretação do presente, construindo ou organizando uma tradição. "Mais
raramente, a antologia pretende delinear algum tipo de ação futura ou de
política cultural, mas em geral se esgota no gesto de valorização da amostra no
presente", argumenta.
A exemplo de Pécora, Luiz Ruffato também analisa
que as antologias são funcionais, principalmente, no período em que são
publicadas. "Elas são importantes num determinado momento,
por reunir um grupo de escritores, por gênero, geração ou região, afirmando esse
conteúdo. Mas ao longo do tempo, a antologia perde o sentido, e é para perder mesmo
o sentido", afirma Ruffato, autor de 10 livros e responsável pela
organização de 20 antologias publicadas no Brasil, entre as quais 48 contos paranaenses (viabilizada pela
Biblioteca Pública do Paraná em 2014), e 4 em outros países.
25
Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira
(2004) e Mais 30 Mulheres que Estão Fazendo
a Nova Literatura Brasileira (2005) foram as duas primeiras antologias que
Ruffato organizou. As obras surgiram a partir da percepção do escritor de que
naquele contexto, início do século XXI, a visibilidade literária ainda era
majoritariamente masculina, apesar da inquestionável e vasta ficção produzida
por mulheres. Posteriormente, ele selecionou textos para as antologias Entre nós — Contos sobre Homossexualidade
(2007) e Questão de Pele — Contos sobre
Preconceito Racial (2009), entre outros títulos. "As antologias que
organizei, de modo geral, têm a finalidade de despertar debate político, de
temas e autores", comenta.
Critérios
e credenciais
Explicar a diferença entre antologia e
coletânea, para Luís Augusto Fischer, não é tarefa fácil. "Mas creio que o
termo coletânea tende a ser usado para a obra de um autor apenas, ao passo que
antologia implica muitas obras. Mas nem isso é uma distinção estável", diz
o professor da UFRGS.
Sabrina Sedlmayer acrescenta que, inclusive
no mercado editorial, há certo embaraço entre os dois termos. "Ambos dizem
respeito a um conjunto de textos recolhidos. No campo teórico e crítico, utiliza-se
o termo coletânea para intitular livros que contêm ensaios e artigos de
pesquisadores variados, textos diferentes. E, quase nunca, o termo
antologia", comenta a estudiosa da UFMG, lembrando que há coletâneas de
prosa e de poesia que poderiam ser chamadas de antologias, mas a editora ou o organizador
preferiu usar coletânea — ou seleta.
Italo Moriconi acredita que toda
antologia é coletânea, mas nem toda coletânea é antologia. Em literatura, o
professor aposentado da UERJ argumenta, coletânea é qualquer reunião de textos
ou trechos de textos, mesmo um livro de contos ou de poemas de um autor pode
ser uma simples coletânea, sem maior organicidade interna.
"Já a antologia pressupõe um
trabalho de seleção. Trata-se de uma coletânea do tipo seleta, ou seja, a
antologia reúne textos escolhidos, selecionados, em função de um critério
qualquer. Os critérios norteadores de uma seleção antológica são os da
representatividade e da superioridade qualitativa", esclarece Moriconi.
Sabrina Sedlmayer, citando Kant, lembra
que “escolher é julgar”. E para escolher, a professora da UFMG enfatiza,
deve-se conhecer: "As boas antologias, a meu ver, são as capazes de trazer
e recuperar uma memória coletiva, um bloco de enunciados não hegemônico. Com
polifonia e dialogismo".
Ela ressalta que o nome do crítico/autor
que empreende a seleção é um dado importante na elaboração e no resultado de
uma antologia. "Porque, além de demonstrar, pela amostragem oferecida, um
conhecimento sólido sobre o assunto, deve articular esse saber com o recorte
escolhido, distanciamento e rigor", diz.
Reavaliar
sempre
De Contos
Brasileiros (1922), organizada por Alberto de Oliveira e Jorge Jobim, a
primeira antologia brasileira de contos, até publicações recentes, há inúmeras
opções disponíveis no país. Flávio Moreira da Costa (1942-2019), Eliane Robert
Moraes, Italo Moriconi, Luiz Ruffato, Nelson de Oliveira e Alcir Pécora são
alguns dos mais respeitados antologistas do Brasil — leia mais em Estante Antológica.
Italo Moriconi observa que as antologias
envelhecem e precisam ser substituídas por novas, uma vez que a passagem do
tempo provoca transformações nas preferências do público leitor e na crítica. "O
século XIX era visto de um jeito em 1940, mas em 2021 ele é percebido de outra
maneira. Houve revalorização de autores, como Luiz Gama (1830-1882) e Maria
Firmina dos Reis (1822-1917)", comenta o antologista, que recomenda — aos
interessados no assunto — consultar antologias antigas para confrontar o gosto
de uma determinada época com o da nossa.
Sabrina Sedlmayer lembra que toda
antologia traz uma inevitável tensão: a impossibilidade de uma escolha
totalizadora e objetiva, junto à necessidade, mesmo que precária e contingente,
de se efetuar uma amostra representativa exemplar, capaz
de vencer distâncias culturais, espaciais e territoriais. Mas, diante do
irremediável, a professora da UFMG cita uma frase de Cecília Meireles a favor
do gênero: "Melhor uma notícia breve ao silêncio completo".
Marcio
Renato dos Santos é jornalista, mestre em Estudos
Literários pela UFPR e autor, entre outros, dos livros de contos A certeza das coisas impossíveis (2018)
e A cor do presente (2019). Nasceu e
vive em Curitiba.
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