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Mostrando postagens de setembro, 2021

Extroversão pode ser extorsão

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  Piada não tem necessariamente relação com humor.   A tese, mais do que conhecida, é obsessão da Aninha. A engenheira química não ri de piada. As piadas, em geral, ela e você sabem, tentam dissimular racismo, misoginia, discriminações, tantos preconceitos.   A curitibana tem convicção de que humor é outra coisa. É, entre possibilidades, visão de mundo, crítica. Ela gosta de comentar que pode ter mais humor em um casmurro resmungando do que nesses sujeitos que, antes do início da pandemia, pretendiam entreter plateias em clubes de comédia, churrascos e encontros em que ingerir álcool era obrigatório.   Se o sujeito gosta de contar, conta e ri da própria piada, neste caso, Aninha destaca, ele merece detenção sem julgamento.   As cinco, seis amigas que estão no Zoom, cada uma em sua casa, bebendo vinho, todas riem – Aninha continua sem mostrar os dentes, talvez irritada ou segurando o riso.   Verônica ri, aplaude, diz que a tese é perfeita e pede licença para acrescen

Toda sorte de azar

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  Por anos Tácito teve a certeza de que, no início, era apenas o som de Robert Johnson. Depois o tudo, para ele, também estava em Eric Clapton sempre blues. Ouviu e sentiu a força em um anônimo que tocava por um, dois, cinco, dez reais na Paulista. Recentemente o fenômeno aconteceu em Curitiba, por segundos, daquele jeito, o único possível.   Mas, evidentemente, as opiniões variam.   Para uns, Bach é o todo, para dois o todo está em Miles Davis ou em Charlie Parker – para três o que há é o canto de Milton Nascimento, Nina Simone e Baby do Brasil. Milhares preferem as canções dos Beatles, outros milhares apreciam o repertório do Queen, centenas e centenas e outras pessoas não sabem se o eterno-maravilhoso foi e é traduzido magicamente por Hermeto Pascoal ou se, de fato, mágicas e eternas são as composições e o canto do Nei Lisboa.   Coincidentemente, Tácito ouvia uma canção do Nei Lisboa quando, por telefone, foi demitido da banda da cantora Xaxim. A artista cancelou todos o

Retorno

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  O pé direito se move, o esquerdo também, o direito avança, em seguida o esquerdo, o asfalto irregular fica ali, há segundos, já estou em outro fragmento desta via, agora sem buracos, e continuo a me mover cada vez com mais velocidade.    Centenas, milhares de casas, uma ao lado da outra, sobre, embaixo, casa dentro de casa no bairro dez quilômetros distante do centro, de onde se vê ao longe, observo daqui, prédios em que apartamentos estão ao lado, abaixo e acima de outros apartamentos.    Há uma reta onde estou, com vegetação rasteira nos dois lados, também tem empresas nas duas margens desta estrada, que agora oferece acesso pela direita e é por ali, aqui, que se faz o meu caminho a mais de oitenta quilômetros por hora.    Dezenas de fábricas, hoje parece sair continuamente fumaça pelas chaminés, o nevoeiro segue em direção à cidade para onde vou.    Antes, que é agora, sigo, sim, em breve estarei lá, mas neste momento faço a pergunta que, já sei, não tenho a respos

Change

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De manutenção

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  O futuro, Janaína diz, o futuro são acasos que funcionam, verbos conjugados exemplarmente, futuro é o ainda não, sim do amanhã, teto mesmo que não seja cobertura, mas proteção e o enfrentamento sereno de adversidades, futuro é o que vai, o que pode e também um tanto sei lá. Ela fala essas e outras coisas sóbria e quando bebe nas noites de quinta a sábado, e domingo, madrugadas de nascer segunda.   A semana começa e Janaína flui – secretamente tem a certeza de que o depois traz muito a ser desfrutado, colher lilases e tantos presentes na véspera de cada noite. Acender e tragar vinte ou mais cigarros de tabaco em meio a uma ou duas garrafas de tinto seco argentino sem desgaste para o organismo, uma dieta com papaia, triglicerídeos italianos, o suco de azeitonas da Espanha e canções inglesas do século vinte, sem restrição a overdrives e/ou reverbs.   O futuro é depois e sem alternativa Janaína caminha nesse terreno chamado presente, onde não tem nem faz aquilo que deseja ou gost

Hoje!

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Lar,

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  Hoje tem Lar, (Companhia das Letras, 2009), do Armando Freitas Filho: "O mar desengonçado/ de quem não sabe nadar/ à frente da casa inquietante/ aterrada pela noite, permitindo/ ruídos não decodificáveis." É um fragmento, citado aleatoriamente, da primeira parte do livro. Outro trecho do mesmo texto poético que segue por 17 páginas: "Começar o escrever era descrever./ Descrever era desmanchar o que está escrito./ O que estava à vista, parado/ no pensamento, no jardim/ e reescrever, de outra forma/ em outra fôrma, o novo curso e rasgo./ Escrever é desespera e espera." Experiente, publicando desde a década de 1960, sofisticado, Armando Freitas Filho dá a impressão (pelo menos para mim) de que a sua poesia traduz o que é a beleza, a dor, o intangível, o inominável, possível perfeição. Toda força da linguagem e repertório operam em "Primeira série", fragmento inicial do livro, reconstituição da infância e adolescência, em que alguns dos principa

Tudo Química

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Cheio de verão no vazio

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  Terça, 3: Iria anotar, fui ao banheiro e esqueci. O que era? Sobre o quê? Entrei nas redes sociais e gastei um dos dias deste verão. Dormi às 23 horas sem escovar os dentes. Quinta, 5: Os mais de trinta graus, não tenho certeza, apenas desconfio, me deixaram tonto – um comprimido a mais e ainda não acertei a medicação. Sexta, 6: Contas atrasadas e mensagens de interrupção de serviço me obrigaram a caminhar até o banco e no trajeto quase caí. Na volta estava menos tonto, mas ainda com medo. O temor é cair na rua e não receber ajuda. Sábado, 7: Três comprimidos e apesar deles desequilíbrio até o início do domingo. Saí da cama para ir ao banheiro e mastigar bolachas. Vi dois ou três filmes na Netflix. Domingo, 8: Duas garrafas de tinto seco e ausência de tontura- vertigem. E ainda: macarrão instantâneo, dois álbuns do Zeca Baleiro,  Em noite de climão , da Letrux, e três comprimidos. Terça, 10: Sem equilibro para caminhar vou de táxi ao hospital. A médica recomenda aumentar a

Quase sem querer

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  Está escuro e o fusca segue, estamos em cinco, outros dois e eu no banco de trás, e tem som, se de fita k-7 ou rádio?, canções enfim, uma após a outra, e risadas. A rodovia dá acesso à cidade onde ainda moro, e de onde vou partir em alguns anos, e é pra lá, para aquele endereço que o carro está indo.   Tem gasolina suficiente, não há obstáculos na pista e o então amigo, que nos próximos anos vai desaparecer de minha vida, consegue dirigir apesar das cervejas que bebeu – no futuro, se tivesse uma blitz, ele seria preso por embriaguez e nós, os quatro passageiros, possivelmente também iríamos para a delegacia se no caminho tivesse uma batida policial.   Mas não teve blitz.   O problema, eu não poderia prever, veio por trás.   Luzes em meio à escuridão acima do fusca. E, em seguida, estouros.   Não eram rojões, e sim tiros, disparos de armas de fogo efetuadas possivelmente por pessoas dentro de carros que, percebi apenas após a sequência de luz e som, enfim, dois ou

Anão de três pernas

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  Quando surge, o anão de três pernas até parece interessante, mas em seguida torna-se insustentável. Ou a palavra seria insuportável? Não lembro, nem mesmo quem pela primeira vez me falou sobre o impacto do anão de três pernas – talvez tenha sido aquele poeta, o que viajou há quase vinte anos.   O poeta, sim, ele falava sobre o impacto de um anão de três pernas, que não precisa ser anão nem ter três pernas. Anão de três pernas, aquele poeta repetia, representa algo exótico, inédito no contexto. Um texto literário, por exemplo, radicalmente experimental, sem enredo, apresentado em meio a narrativas aparentemente convencionais – convencionais mas com linguagem, potentes.   Em meio a potentes narrativas consideradas convencionais, o texto experimental (sem enredo), enfatizava aquele poeta, poderia se destacar conquistando aplausos, prêmios, tantos troféus. Até tendência, veja só, o diferente estabeleceria. Mas, o poeta não deixava de advertir, uma vez conhecido, talvez copiado e

Relax

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Às vezes, aos domingos

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Binaca

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  Nunca mais fui ao Café & Restaurante Trem Pagador. Almocei por anos no local, onde a refeição era e talvez ainda seja servida até as 15 horas. Por ser autônomo, poderia, em tese, almoçar na hora em que quisesse. No entanto, para sobreviver sou obrigado a participar de reuniões, algumas realizadas no tradicional horário de almoço. Mas, enfim, frequentei assiduamente o estabelecimento daquele empresário, o Trem Pagador, conhecido por investir no cultivo de laranjas e na criação de patos.   Eu chegava pouco antes de o serviço ser encerrado, portanto, quase não havia clientes nem comida. Mas era bom, ótimo. Especialmente pelo fato de eu escutar a conversa dos garçons, que conhecia de oi e tchau, mas de quem nunca soube os nomes. Fiquei sabendo que eram universitários da área de humanas, a maioria do curso de letras. A cada semana, dez, quinze dias, discutiam exaustivamente uma questão. Depois mudavam de assunto.   Lembro como se fosse há poucos minutos, mas já faz tanto tempo

Anjos Tronchos

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Nocaute

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  Inicialmente sorria. Irritou-se, cenho franzido depois. Também seguiu pelos corredores, café, bate-papo, cigarro e bocejo. Dois ou três minutos do clique até o Word abrir. A espera pelo Google e para conferir e-mails ultrapassava cinco, seis, sete minutos.   Disse para si mesma que nesses intervalos poderia ler a Ilíada , Dom Quixote , Moby Dick e Alice no país das maravilhas . E leu as obras de Homero, Cervantes, Melville, Carroll e outros autores enquanto esperava para usar o computador e trabalhar no trabalho.   Duda também conheceu canções, conferiu Instagram, reportagens e memes – fez frilas, revisão e escreveu textos dentro da empresa. O Benja, o Leo e o Flávio, colegas da Duda, receberam no escritório clientes de seus próprios e pequenos negócios – isso tudo antes do início da pandemia.   Napa, o dono da empresa, contratou um ineficiente serviço de conexão de internet com a finalidade de deixar os funcionários quase off-line. Desconfiava, mas não poderia prever qu

Joana e Georgia

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  Aceclofenaco a cada doze horas e paracetamol mais fosfato de codeína de seis em seis horas. Dessa maneira Geraldo faz a marcação de seus dias recentes e as noites que segue acordado desde que elas, as duas, se foram. Por muito tempo, companheiras inseparáveis dele. Viajaram, juntos estiveram em praias, saunas, montanhas, piscinas, mares, restaurantes, quartos de hotéis e pousadas – e, como Geraldo gosta de dizer, ajudaram a queimar tanta coisa por aí, principalmente dólares.   Agora, sem Joana e Georgia, Geraldo só não cai e não grita por usar medicação. Mas o efeito dos remédios às vezes termina antes do horário previsto, o mal-estar se faz presente e Geraldo lembra, mesmo sem querer lembrar, de Joana e Georgia.   Joana e Georgia eram rebeldes, até e inclusive musicais, surpreendentes, e interferiram na vida de Geraldo.   Estiveram com Geraldo não por amor, mas com a finalidade de prejudicar o empreendedor responsável indiretamente pela cidade ser do jeito que ela é e ai