Cara de alface
Uma
mulher passou por aqui, estava tudo limpo, sabe?, tudo, e ela deixou vazar de
um pacote areia para gato, que coisa, não é mesmo? Não pediu desculpa, nem
falou nada, olhou pra mim, e o olhar dela parecia gritar que eu era a culpada
por alguma coisa, por tanto, por muito, por tudo, pode? Fiquei ali, bem quieta,
calada, com cara de alface.
Escutei
as frases, talvez um parágrafo se fosse para fazer a transcrição, e saí sem
entender. Cara de alface? Alface, todos sabem, é a mais insossa das folhas de
uma salada. Alface, nem todos têm consciência, mal lavada pode conter parasitas
– quanta gente já foi contaminada por meio do vegetal? Alface, nem todos
admitem, é o pior item do x-salada, confesse, você sabe disso, alface é o que
sobra na mesa se na mesa tem algo além de alface, oh, alface, alface rica em
manganês pode prejudicar o funcionamento da tireoide se consumida em excesso,
alface que, devido ao seu não gosto, em mais de noventa por cento dos casos
impede crianças e adultos de apreciarem realmente uma salada, ai, alface,
evitada até por alguns vegetarianos.
Nutricionistas,
inclusive os que não estudaram e apenas comentam sobre quase todos os assuntos
nas redes sociais, eles e elas afirmam que comer alface todos os dias pode
fortalecer o sistema imunológico. Ainda de acordo com palestrantes de Internet
e/ou consultório, ingerir diariamente o vegetal ajuda na, palavra escolhida por
especialistas, manutenção de um corpo livre de gripe e resfriados – a alface
(isso você sabia, ou não?) possui vitamina C, além, é claro, das vitaminas A e
B3 (ou niacina), cálcio e ferro.
A
anunciada cara de alface, expressão dita por aquela, para mim, desconhecida
mulher, seria – então – o rosto de uma pessoa saudável, talvez com overdose de
vitaminas no organismo? Ou teria relação com as fibras presentes no vegetal,
filamentos capazes de prevenir constipação, prisão de ventre e ainda
proporcionar a sensação de saciedade durante, por exemplo, um almoço?
Não
entendo, não entendi e, ainda, talvez alface – para mim – soe como all face,
todas as faces, rostos de todes, todas e todos, mas já nem sei o que ouço,
escuto, entendo, se é que ouvi, escutei e entendi o que aquela mulher falou a
respeito de uma experiência com outra, para ela, desconhecida mulher.
Cara
de alface, me pergunto somente agora, seria o rosto de uma pessoa de fibra,
homem ou mulher de caráter, um ser batalhador, determinado e disposto a
enfrentar sem hesitação desafios que surgem inesperadamente?
Mas o
que mesmo eu quero saber? Cara de alface? Deve ser um rosto, em tese, isento de
expressões, aparentemente controlado apesar do eventual vacilo do interlocutor.
É isso? Cara de quem percebe a jogada, todo o lance e não passa recibo. É, não
é?
Se
não for, que seja, tudo certo. Mas, lembro, também preciso saber, isso sim, o
que significa mão de alface, expressão que escutei, ouvi em um programa de TV.
Os sujeitos que possivelmente não sabem jogar bola nem defender chutes a gol
dão notas para as atuações de jogadores de futebol e goleiros, especialmente
goleiros, muitos dos quais definidos por esses comentaristas como mãos de
alface.
Meu conto publicado na Revista Ideias em setembro de 2020 com
fotografia do Vitor Mann.
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