Carne e colapso


Hoje tem Carne e colapso (Urutau, 2020), da Jessica Stori: A obra reúne poemas – às vezes a impressão é de que são poemas em prosa, já em outros textos a percepção sugere que se tratam de narrativas, e a dúvida não se desfaz: são poemas, narrativas ou poemas em prosa?

São textos (performances) que desafiam classificações, fluindo híbridos, rebeldes diante de uma eventual autoridade que pretende classificá-lo(a)s.

De fato, os textos-poemas irradiam rebeldia, não apenas de uma mulher, levando em conta a autoria, e sim da humanidade – a partir, sem dúvida, de uma potente, bem-informada e articulada voz feminina.

O tom é de confronto, explicitado pela vocalização que conduz-enuncia os conteúdos – alguém em busca de liberdade, sem vontade de curvar a espinha e dizer o que se espera que seja dito, mas que para sobreviver aparentemente respeita o que e quem exige respeito e obediência: "eu quase escuto o patrão/ mas eu só consigo pensar em dinheiro".

Um dos pontos altos desta coletânea é "tutorial de moça bem-feita", narrativa que pode exemplificar ainda mais a proposta artística de Jessica Stori.

A personagem pede, por telefone, massa, liga o aparelho de som com gravação de vozes familiares, incluindo suspiros, risadas, e toma banho ouvindo a trilha sonora.

Já com vestido, maquiagem e brincos, abre duas garrafas de vinho, liga o pisca-pisca e, enfim, escuta o som da campainha – o entregador vai ver por instantes a cliente que (ele não sabe) terá mais um solitário almoço de Natal.

O vazio agudo da protagonista de "tutorial de moça bem-feita" dialoga com ausências-carências de outras personagens que dão espessura a Corpo e colapso.

Tem a obcecada pela vizinha ("1, 2, 3"), outra considera-se a própria beira do colapso ("precipito-me"), uma terceira desconfia que lhe falta um afeto sem nome ("íntima natureza"), uma quarta nasceu em uma família sem posses ("aquela que não herda") e uma quinta sabe que ter nascido no Brasil é quase não ser – não ter ("emoção brasileira").

Se o tom de Corpo e colapso é de desilusão, a maneira como a curitibana Jessica Stori elabora esse cenário-painel revela alta voltagem artística, anunciando uma voz literária repleta de inquietação e recursos.

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