Tenho pistola, pistolão
Está um saco andar na cidade, é
muita gente pedindo. Se fosse pra colaborar com todos, teria que ter um saco de
moedas e mais notas especialmente separadas para esta finalidade. Já fiz a
besteira de dar moeda e até dinheiro, mas, confesso, cansei.
A Glock 17 está escondida em um
dos bolsos do casaco, estou na segunda quadra, sentido bairro-centro, e
curiosamente hoje ninguém me incomodou.
Ainda.
Então vejo um sujeito que me incomoda.
Toda vez que me vê, pede dinheiro. Sempre nego. E apesar disso, continua
pedindo. Uma vez, falei que não tinha nada, nem dinheiro, e ele comentou: essa
é manjada, hein?
A partir do episódio, começou a
fazer comentários que não escuto, mas sei que o sujeito emite grunhidos,
possíveis maldições. Hoje, no entanto, é diferente.
Tenho algo pra ele.
O sujeito, que batizei de Arigó
do Ray-Ban, usa óculos escuros e já percebeu que estou em movimento. Poucos passos
nos separam nesta sexta-feira 13, dez horas, quinze minutos e céu nublado. Abre
o sorriso, seus poucos dentes podem ser vistos a alguns metros e antes do
sujeito pedir algo, minha mão direita tira de um dos bolsos do casaco a
pistola, de onde sai um tiro que acerta o olho esquerdo do Arigó do Ray-Ban.
Coloquei a Glock 17 no bolso do
casaco e segui caminhando sem olhar para os lados – óculos escuros me protegem,
ao menos de alguns olhares. Já estou em outra quadra e, então, uma mulher que vende
balas se aproxima. Nos encontramos quase todos os dias, ela sempre insiste,
nunca comprei nada, mas a mulher que identifico como Sweet Bastard é
persistente e diz: fique à vontade. Ela sorri antes de receber um, dois tiros,
um na cabeça, outro no peito.
Destino outra bala para um
guardador de carros, figura que me evoca o nome Noé, o da Bíblia, fumante que,
pelos meus cálculos, não teria nem mais um ano de vida. Nem escondo a pistola,
apenas a carrego com a mão esquerda e aproveito para disparar três tiros na
direção de um pedinte que já me seguiu pelas ruas. Dois disparos acertaram um
carro estacionado em cima da calçada, e ele, o pedinte chato, caiu, sangra e,
tenho a impressão, não vai incomodar mais ninguém.
Há um catador de papel, que
nunca vi, a poucos passos de onde estou. Caminho lentamente, ele não me
observa. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete passos. Já não tem mais o
catador que estava no meu caminho.
Preciso parar, pode ser em um
café, num boteco ou pastelaria, para conferir o que restou de munição, mas,
logo ali, embaixo daquela marquise, tem cinco, seis ou mais mendigos. Nove
disparos e talvez quase ninguém venha a reclamar a ausência deles.
Faz quarenta dias que não
chove, está nublado, a previsão do tempo diz que chuva, se vier, só daqui a uma
semana. Apesar disso, e de uma tosse seca, me sinto bem. Meu dedo indicador direito
dói, sofro de flatulência, arroto, preciso perder trinta quilos e, apesar
disso, estou bem. Não deixo de roer as unhas, meus ombros são caídos, sinto dor
na coluna e no rim e, no entanto, apesar disso tudo, estou bem, muito bem.
Tem um ônibus parado num ponto,
olho a placa para saber que linha é, Fontes Murmurantes-Algum Tempo Depois, não
sei para onde vai e, mesmo assim, entro.
Pago os quase cinco reais,
passo a roleta, sento em um banco, preferencial para idosos. Tiro a Glock do
bolso, seguro a pistola com a mão direita.
Troco o pente.
Estou pronto.
Por que um filho da puta de um
assaltante não entra nesse ônibus? Ou, então, por que um maníaco sexual não
experimenta bolinar algum passageiro, outra passageira? Até integrantes de
torcida organizada eu passava, se os idiotas estivessem agora, aqui. Levanto,
aperto a campainha, o ônibus para imediatamente e desço.
Escondo a Glock 17 no bolso do
casaco e sigo confiante. Tenho uma pistola, um pistolão, o que abre os meus
caminhos. Mas talvez eu não precise da pistola aqui. A praça está vazia,
estranho, em geral tem uns inoperantes, vadios, os malacos inofensivos, porém,
chatos, insistentemente chatos. Tem um merda que circula na região, figura
suja, mal cheirosa e repugnante. O identifico como o poeta Gentileza, barba
suja, sorriso desdentado, não passa de um tarado, até deixa a braguilha aberta
e, quando vê uma mulher, começa a falar, se exibe, às vezes até mostra o pau.
Já estou no meio da praça, não
tem água no chafariz, onde mendigos tomam banho. Não vejo nenhuma pessoa, nem
mendigos. Mas, que sorte, o meu Gentileza está sentado em um banco. Deve estar
falando com ele mesmo ou na expectativa de ver e assediar alguma mulher. Numa
dessas, pode estar queimando fumo. Caminho até onde o mala está. Mas não serei
covarde de passar o verme pelas costas. Quero que o demente encare quem vai
acabar com sua lamentável existência. Tenho uma pistola, um pistolão, o que
abre os meus caminhos, não vou morrer pagão.
Pronto, ei, olhe aqui, isso é
pra você.
Disparo três vezes no
Gentileza, primeiro no peito, depois no joelho esquerdo e, em seguida, na
cabeça e, antes dele cair, digo que gente lesa gera gente lesa. Gentilesa,
Gentileza. O projeto da vadiagem, o profeta Gentilesa. Tenho pistola, tenho
pistolão, vou em frente, não vou tombar, não sou bundão. Mas, opa, acho que
errei o alvo. Não, acertei, o mendigo está morto, mas não é o sujeito que
pretendia eliminar. Que vacilo. Mas, talvez, eu não tenha vacilado. Numa
dessas, fiz mais uma limpeza. Melhor eu ficar ligado. Se continuar assim, chego
ao paraíso antes do tempo.
Já saí da praça e sigo agora
por uma das ruas de que mais gosto. Aqui funcionam escritórios, três hotéis,
tem árvores, pontos de táxi, saunas, rotisserias, bistrôs, restaurantes,
agências bancárias, banco pra sentar, dois shoppings, lojas que vendem roupas,
sapatos, bebidas, lustres, móveis, canetas, relógios e armas.
Vejo um sujeito mal vestido que
pede algo para uma senhora, depois chega em um estudante. Pede para um
terceiro, para uma quarta pessoa.
O senhor, por favor, tem uma
moeda?
Paro e pergunto: o que foi? Não
é assalto, não. Não é? Não, eu poderia estar assaltando. Então me assalte, seu verme!
O quê? Me assalte, filho da puta! Eu... Vamos. O mal vestido me encara, tiro a
Glock 17 do bolso do casaco e disparo um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete
vezes contra o corpo que cai, ensanguentado na calçada.
Falta apenas uma quadra para eu
chegar no trabalho. A partir de agora, melhor guardar a pistola. Lá dentro não preciso,
nem devo, usar a Glock. Não gosto do que sou obrigado a fazer em troca do
dinheiro que me garante quatro refeições por dia, roupa, comida, bebida, celular,
TV a cabo e outras despesas. Mas sem este emprego, nem sei o que seria de mim.
Talvez eu me tornasse um desses vagabundos que me incomodam e que, hoje, tirei
do meu caminho.
Publicado em A certeza das coisas impossíveis
(Tulipas Negras, 2018), o meu sétimo livro de contos.
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