Ludmila em transe
A
corrida de São Silvestre já terminou, isso não é relevante, eu nem deveria
comentar, afinal, você sabe que a São Silvestre passou. Na real, você nem deu
atenção para a São Silvestre 2018. O réveillon também já foi, você sabe, quase
todos sabem, mas o que você e muitos não ficaram sabendo é como eu passei o
réveillon.
Antes,
porém — temos tempo para isso, não temos? —, preciso me apresentar: sou a Kátia
Flávia, a Godiva do Irajá. Atravessei os últimos minutos de 2018 em direção a
2019 dirigindo o meu carro. Não, não fui para o litoral. Fiquei aqui, aqui na
montanha. Estava de biquíni e sandália. Não, não fazia calor, você bem sabe,
estava frio. Mas tudo bem, não é mesmo?
Faço
questão de estar em movimento durante as passagens de ano, se possível,
dirigindo automóvel. É o meu ritual. Se dá certo? Se traz sorte? Já conheci
homens com quem passei a me relacionar, encontrei oportunidades profissionais,
convites para viagens e outras surpresas. No mais recente réveillon, surgiu uma
situação inesperada e, até agora, inesquecível.
Sou
obrigada, no entanto, a fazer uma correção. Meu nome não é Kátia Flávia, a
Godiva do Irajá. Sou a Gilda. Acho que me confundi, desculpe, estou levemente
tensa e, nessas situações, às vezes troco nomes e palavras, altero a sequência
dos fatos, omito detalhes, mas, em hipótese nenhuma, invento ou conto mentiras.
Mas,
enfim, no mais recente réveillon eu dirigia pelas ruas da cidade e, minutos
após a queima de fogos, quando um ou outro rojão ainda estourava isolado, me
envolvi em um acidente. Parei diante de um sinal vermelho, escutava uma canção
norueguesa, quando senti o impacto de uma batida na parte traseira do meu
carro.
O
causador do problema veio pedir desculpas e, tenho certeza, ficou espantado,
com olhos bem abertos, ao me ver de biquíni. Pedestres e motoristas rodearam o
carro e, quando saí, um sujeito perguntou se eu estava bem, outro queria me
abraçar e alguns pediram para eu dizer o meu nome. Para um deles, talvez o mais
charmoso, falei:
— Sou a
Ninon de Lenclos.
Minutos
depois, já estava na cama dele e com ele, de quem não lembro o nome. Tomei uma
ducha e, apesar do frio, lembra que até nublou no réveillon?, vesti o biquíni e
a sandália. E eu tinha outra opção?
Ele
promovia uma festa e, mesmo sem traje apropriado, fui para o salão, onde outros
homens me cortejaram. Para um deles, disse ser a Margaretha Zelle. Já para uns
três ou quatro, talvez para sete jovens, me apresentei como a Lola Montez. E
para um grupo de idosos, totalmente embriagados, contei que desde que nasci me
chamam de Aurore Dupin Dudevant.
Bebi
demais, misturei espumante, cerveja, ciroc, vinho tinto e branco, conhaque, uísque,
tequila e energético, até refrigerante consumi. Em algum momento, pouco antes
de o dia primeiro clarear, não sabia onde estava e, então, um homem, que se
identificou como Henrique Segundo, queria saber o meu nome. Sabe o que
respondi?
— Sou a
Diana de Poitiers.
Como
cheguei em casa? Quem me trouxe? Não faço ideia. Sei que, antes de seguir para
o quarto, desci até a garagem e o meu carro estava lá, intacto.
Se
alguém disser que passei o réveillon sozinha dentro de casa, não acredite.
Afinal, você sabe quem eu sou e não tem dúvida de que meu nome é Ludmila, não é
mesmo?
Conto meu publicado na Revista Ideias de janeiro de 2019, com ilustração do Vitor Mann.
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