Caminho de Santiago


Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete degraus, dois passos, outros sete degraus, em sentido horário, estou um andar abaixo de onde es­tava e um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete degraus, outros dois passos, outros sete degraus, em sentido horário, vou para baixo, não me canso, ainda não sei para onde vou, sigo e tenho a impressão de ter escutado a voz do Cândido.

Ou seria o Albino? Um não tem nada a ver com o outro, talvez eles nem se conheçam. Eu os conheci em situações separadas por décadas. O Cândido me levou até uma empresa, mostrou a encomenda que fez, eu fiz o meu pedido, no dia seguinte voltei lá, sozinho, e comprei a produto do Cândido. Antes disso, ele havia me ajudado, muito, durante travessias turbulentas e eu o passei para trás, o que também fiz com o Albino.

Santiago?

O que é isso?

Santiago.

Quem é?

Santiago?

Quem está aí?

Santiago?

De onde surgem as vozes? Quem são vocês? Ou é você? Por que me chamam? Será que é por cau­sa desses chamados que sigo um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete degraus abaixo, dois passos, outros sete degraus em sentido horário? Por quantos anda­res já passei?

Posso parar, quem sabe?, e seguir por um des­ses andares. Posso? Isso é uma ideia: interrom­per a marcha e entrar em um apartamento. Numa dessas escapo de algo que me espera lá embaixo, no fundo, quando esse seguir acabar.

Isso, isso mesmo.

Vou interromper esse seguir automatizado, esse um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete degraus, dois passos, outros sete degraus em sentido horário, quer ver?

Olhe aqui.

Interrompi o fluxo. Será? Caminho por um an­dar, sem descer degraus. Estou em uma linha reta. Mesmo? Há um som dentro do apartamento. Encos­to a orelha, esquerda, depois a direita, na porta. Va­mos lá. Acho que essa voz é do, de quem mesmo? Do Moby. Conhece? Ele é um sujeito que quase conheci, quase nos tornamos amigos, mas.

Cada um seguiu por uma direção. Ele para cima, e eu, para baixo, como seguia antes de parar aqui, neste andar.

Fato é que o Moby pode ser um concorren­te, eventual adversário na luta para conseguir tinto seco, brisa e carboidratos. Mas não, não competimos diretamente.

Não lembro como, onde, quando, mas comecei a difamar o Moby. Em toda oportunidade, eu falava mal dele. Até para os amigos dele. Um dia, uma pessoa, um advogado, me procu­rou e quis saber por que eu vivia a falar mal do Moby. Tergiversei, e saí para um copo de água.

Dentro daquele apartamento, para onde segui para interromper o fluxo de descida pelas escadas, o Moby me convidou para entrar, e entrei. Abriu um sorriso, me cumprimentou e fomos sentar nos sofás da sala. O Moby fez convites para eu participar de eventos que me trariam visibilidade, retorno de imagem e dinheiro. Eu deixava ele falar, ele falava, sorria, seguia a falar, dizendo Santiago, vamos fazer isso, aquilo – havia vontade, da parte dele, de me en­volver em ações e parcerias.

Escutar eu escutei, mas não consegui falar. Desde muito falei mal do Moby e, então, ele ali me convidando para projetos, todo gentil, não, não po­deria ser e se fosse era demais, muito, super, extra.

Disse, ao Moby, que eu precisava sair, e ele per­guntou se eu estava bem, eu disse que sim, muito bem, e ele quis saber se eu tinha fôlego, não entendi, respondi que sim, e ele ainda falou que faltava arti­cular outras propostas, mas eu disse tchau, caminhei até a porta, e saí.

Retorno, então, àquele um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete degraus, dois passos, outros sete de­graus, em sentido horário, estou, agora, em um andar abaixo de onde estava e um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete degraus, outros dois passos, outros sete de­graus, em sentido horário e penso que só consegui interromper essa sequência para enfrentar um fan­tasma, o Moby.

Eu não o conhecia, apenas falava muito mal dele, e não é que o sujeito se revelou gente boa?

Ou estava todo gentileza só pra me colocar numa fria? Era armadilha e estou confuso? Sigo em círculo, para baixo e não fico tonto. Fico? Consegui­rei interromper o fluxo mais uma vez? E, se eu parar, será para encontrar outro fantasma?

Sigo, outra vez, naquele mesmo um, dois, três, quatro, estou dentro de um relógio? Clique, cloque? Não. Vou pela escada, já mudei de andar, daqui a al­guns segundos, pronto, cheguei a outro piso, inferior, e lembro de um sonho no qual eu estava dentro de um ônibus.

O veículo seguia por pla­nícies e planaltos, e não havia destino anunciado para os passageiros. Vimos, eu vi, pela janela, areia, grama, pedra, água doce e salgada, terra, asfalto, sombra de árvores, calçada preta e branca, bancos, curvas, azul, verde, vermelho, outras cores e quase fiquei cego de tanta luz.

O sonho, não, não era aventura onírica, o ôni­bus parava em algumas estações, passageiros saíam, outros entravam. Não encontrava o meu bilhete e levantei da poltrona para perguntar ao motorista, mais de uma vez, se eu tinha de descer. Ele não sabia e, de volta ao meu lugar, permaneci tenso durante parte do trajeto – e devo ter adormecido ou as luzes se apagaram, não lembro.

Um, dois, três, quatro passos, será que estou dentro de um rock? Tem sido um longo tempo desde que comecei esse passeio, e um, dois, três, quatro. Isso é passeio? Para onde? Não sei se vou a algum lugar e, se estou indo, não consigo me convencer. Estou em uma marcha moto-contínuo rumo a qual estação?

Tem sido um longo período de tempo, há muito tempo. O que é isso? Um, dois, três, quatro passos. Agora, confesso, começo a cansar dessa repeti­ção, desses um, dois, três, quatro passos, desse descer e não chegar a nenhum ponto, a nenhum descanso. Se for para parar e ter encontro com algum desafeto, como o Moby, prefiro seguir, se bem que o Moby se revelou amistoso.

De novo esse um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete degraus, dois passos, outros sete degraus, em sentido horário, estou em outro andar abaixo de onde estava há pouco e isso se emenda a um novo um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete degraus, ou­tros dois passos, outros sete degraus, em sentido horário, para baixo.

Sigo neste vai sei lá pra onde, se é que vai mes­mo, mas isto está indo, não está? Está sim, pelo me­nos algo, ou tudo?, diz que sim – mas se não for, penso, somente agora neste momento, que eu poderia parar e ao invés de repousar em um piso, sabe, eu poderia, vou dizer, preciso enunciar, se eu parasse de descer eu poderia subir, não poderia?

Sim. Quem sabe se, ao invés de descer, eu subisse? Numa dessas eu poderia, quem sabe?, reencontrar pessoas com quem tive problemas e conversar. O encontro com o Moby me iluminou. Eu falava mal dele, sem o conhecer, e daí, no primei­ro encontro, ele me tratou tão bem. E se eu voltar e refizer os meus passos? É uma ideia, não sei se boa ou não, mas possibilidade.

No entanto agora sim começo realmente a cansar e não sei se tenho e terei fôlego para enfrentar uma subida. Esses reencontros poderiam exigir ener­gia, e isso, agora, quase não há.

Vejo, há uma luz, será o fim? Quando tem luz no fim do túnel, não é farol de trem, pode ser ausên­cia de visão, excesso de olhar para estrelas, fogueira, chamas. Tudo se torna branco e pode ser o final, en­fim, dessa marcha, e se for, vou seguir em meio a um branco total, tantos andaram e andam nesse mar, neve, túnel, tend...

Conto publicado em 2,99 (Tulipas Negras, 2014), o meu terceiro livro de narrativas.

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