Tendência


São 11h29 e Daniel Moura chega no café do museu para a entrevista. O curador, Aguinaldo López, e o assessor de imprensa, Clóvis de Almeida, ainda não chegaram. O repórter olha outra vez no relógio e são 11h30, o horário combinado. Ele tem uma hora para fazer a entrevista, voltar para a redação e, antes das 16 horas, o editor vai cobrar a matéria.

Daniel senta em uma cadeira, ao redor de uma das mesas de canto, e pede ao garçom café coado. Deixa o gravador, o bloco de anotações e a caneta em cima da mesa. A abertura da exposição Tendência será a capa do caderno de cultura amanhã. Leu, releu, conferiu uma terceira vez o release e não entendeu quase nada.

Mas isso, não entender quase nada, não é necessariamente um problema.

Daniel já escreveu mais de cem, não, duzentas, trezentas, centenas de reportagens a respeito de assuntos que não conhece. Esses textos foram e ainda são elogiados, alguns deles conquistaram prêmios, outros se tornaram referência e são apresentados por professores, a alunos de jornalismo, como exemplos, modelos a serem seguidos.

O repórter defende a tese de que é impossível voltar para a redação sem assunto. Para ele, tudo rende – sempre. O importante, Daniel costuma dizer aos colegas, em especial aos estreantes, é conversar, perguntar e ouvir com atenção o entrevistado.

Bom dia!, diz Aguinaldo López.

Desculpe o atraso, completa Clóvis de Almeida.

Daniel Moura sorri, se levanta e cumprimenta o curador e o assessor de imprensa. O garçom traz o café para o repórter.

Um doppio, o curador pede ao garçom.

E um capuccino pra mim, por favor – esse é o pedido do assessor de imprensa.

Tudo bem?, pergunta o repórter.

Tudo, tudo na correria, diz o curador.

Podemos começar?

Claro, estamos aqui pra isso mesmo, não é Clóvis?

Sem dúvida, Aguinaldo.

Daniel liga o gravador, pega o bloco de anotações e a caneta.

Então, o que o público vai encontrar nesta exposição?

Desculpe, como é o seu nome?

Daniel.

Daniel, o Clóvis te enviou o release?

Sim, eu recebi.

Então...

Eu gostaria de ouvir o senhor...

Você, por favor.

Ok. Eu gostaria de uma explicação a respeito da...

Tendência retoma aspectos do passado, renovados no presente e abre possibilidades no porvir.

Sim.

O resultado, sabe, é fascinante, sempre surpreendente, quando pode parecer óbvio. O rigor formal dialoga com...

O que tem nesta exposição?

Como assim?

O que o público vai ver?

O garçom chega com os pedidos do curador e do assessor de imprensa.

Aguinaldo López bebe um gole de seu doppio e diz:

Um primor!

Clóvis de Almeida bebe um gole de seu capuccino e comenta:

Sensacional!

Mas, Aguinaldo, o que mesmo que...

Tendência é um convite para o espectador-viajante percorrer linguagens presentes na mostra, buscando encontrar a arte nela mesma, capturando sentidos e transcendência...

Desculpe.

Pois não.

O que o público vai encontrar...

Já disseram que não há arte sem artista, porém, é imprescindível acrescentar que não há arte sem espectador. Arte diz respeito a compartilhamento, ainda mais depois do advento das redes sociais.

Eu queria saber...

Pergunte.

Quantas obras foram reunidas nesta mostra?

São 140 obras de 90 artistas, diz o assessor.

E o que guiou o processo da escolha, a curadoria?

Tendência é uma viagem, um passeio, um flerte com a produção atual. E, enfim, essa viagem não é algo linear, ao contrário.

Tem instalações?

O conceito desta proposta abre espaço para pop art, instalações, telas, pinturas, fotografias, arte cinética, o que mais Clóvis?

Há também propostas interativas.

Bem lembrado.

Estou aqui pra isso, Aguinaldo.

Tem opções interativas, de modo que há um diálogo entre as obras escolhidas, mas também há espaço para o visitante interagir. Tendência é um recorte do zeitgeist.

Mais um café, por favor.

Coado?, pergunta o garçom.

Sim.

E mais um doppio, pede o curador.

O assessor também pede:

Outro capuccino, por gentileza.

Aguinaldo...

Sim.

Desculpe dizer...

Diga.

Não estou entendendo o que você diz.

Como assim?

O seu discurso é um tanto...

Complexo?

Também, mas...

Eu estou apenas falando. Clóvis, você tem dificuldade pra entender o que eu falo?

Não, Aguinaldo. De jeito nenhum.

É que...

Você acompanha visuais?

Sim.

Então?

O seu discurso é vago.

Como assim?

O garçom chega com os pedidos, o café coado, o doppio e o capuccino.

Aguinaldo, o seu discurso é quase incompreensível.

Só se for pra você!

Aguinaldo, eu preciso escrever uma matéria.

É o que todos esperamos.

Mas você só divaga.

O quê?

Preciso de informações e de afirmações.

Você é um analfabeto, seu reporterzinho!

Me respeite!

Como posso respeitar um sujeito sem repertório? Me poupe!

O senhor, na real, quer saber?

O quê?

O senhor não entende nada e fica só floreando.

Seu verme!

Calma aí, gente!

Clóvis, a entrevista está encerrada, diz Aguinaldo, que se levanta e caminha em direção à porta do café do museu.

O repórter e o assessor de imprensa olham o curador sair, enquanto as pessoas, mais de vinte, que estão no café, olham para eles.

Calma, Daniel.

Clóvis, esse curador é um imbecil.

Eu sei.

Você sabe?

Ele se acha mais importante do que as obras e os artistas.

Sério?

É um pavão.

Que mala!

E agora, amigo?

Agora?

Vai ter matéria?

Vai ter que ter.

Você precisa de alguma ajuda?

Clóvis, não sei, esse papo não rendeu nada.

Nada?

Nada.

E se você contasse o que aconteceu aqui?

Como assim?

Você poderia fazer esse, como é o nome?

O quê?

Jornalismo literário.

Jornalismo literário?

Sim.

Mas o que é jornalismo literário?

É contar tudo.

Tudo?

O que você ouviu, viu e sentiu durante a entrevista.

Será?

É uma possibilidade.

Mas não vai pegar mal?

Pra quem?

Pro museu.

O mala foi o Aguinaldo.

E que mala.

O que acha?

Não sei, esse lance me broxou.

Ei, Daniel, vamos sair sem pagar?

Sem pagar?

É.

Por quê?

Pra transgredir.

Transgredir?

Vamos?

Demorô.

Conto publicado em Mais laiquis (Tulipas Negras, 2015), o meu quarto livro de narrativas.

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