De manutenção


O futuro, Janaína diz, o futuro são acasos que funcionam, verbos conjugados exemplarmente, futuro é o ainda não, sim do amanhã, teto mesmo que não seja cobertura, mas proteção e o enfrentamento sereno de adversidades, futuro é o que vai, o que pode e também um tanto sei lá. Ela fala essas e outras coisas sóbria e quando bebe nas noites de quinta a sábado, e domingo, madrugadas de nascer segunda.

A semana começa e Janaína flui – secretamente tem a certeza de que o depois traz muito a ser desfrutado, colher lilases e tantos presentes na véspera de cada noite. Acender e tragar vinte ou mais cigarros de tabaco em meio a uma ou duas garrafas de tinto seco argentino sem desgaste para o organismo, uma dieta com papaia, triglicerídeos italianos, o suco de azeitonas da Espanha e canções inglesas do século vinte, sem restrição a overdrives e/ou reverbs.

O futuro é depois e sem alternativa Janaína caminha nesse terreno chamado presente, onde não tem nem faz aquilo que deseja ou gosta. Fulano, por exemplo, ajuda a consumir o presente. Não o considera namorado, mas um bofe de manutenção. Não casa com ele nem se engravidar, nem sob ameaça, nem se a obrigarem a pular sem paraquedas de zepelim ou voo de entretenimento.

No pensar, entender e sentir de Janaína, Fulano é pouca prosa, nada poesia, desafina e não se espreguiça, parece até não soltar gases. A barba a la Guevara e a fachada revolution são erros de continuidade de cinema ruim, cineminha de domingo em shopping, estratégias de adesão ao exército de Fulanos – todos parecidos uns com os demais, todos ficam com amigas, conhecidas e desconhecidas de Janaína, todos do mesmo barro: bofes de manutenção.

Janaína espera que algum amanhã materialize um homem que não seja bofe de manutenção, e se isso acontecer (tem esperança de que o desejo se realize), Fulano e outros genéricos que conheceu, como Beltrano, Sicrano e Belbetrano, não passarão de miragens deste presente, bibelôs do passado, polaróides descartáveis, se possível removíveis de seu HD emocional.

Nem imperfeito ou pouco venturoso, o presente para Janaína é um fato incontornável, necessário para ela chegar ao que considera artefato a ser desfrutado, o porvir. Percorre as sendas e ouve-percebe sinais-fragmentos enunciados por transeuntes que encontra ao acaso, como o Destino, personagem do filme Portas da Noite, do Marcel Carné, diretor de um legado que ela e os bofes de manutenção também desconhecem.

E diferentemente do que acontece em Portas da Noite (os personagens não escutam o Destino, interpretado por Jean Vilar), Janaína escuta e muitas vezes considera o que é dito por desconhecidos e desconhecidas: são pepitas, diamantes e asas de lótus que usa para decolagens, viver, sei lá, balança-pema, balança sem parar.


Meu conto publicado na edição de outubro de 2019 da Ideias, com ilustração do Vitor Mann. 

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