Antes das seis

É um milagre ouvir Eletric Ladyland. Já nos primeiros segundos você pode entrar no universo sugerido por Jimi Hendrix. Lá tem cores, movimento permanente, sequências não óbvias, quase nada parado, talvez apenas você que ainda não entrou nas canções e no muito que elas têm.

Do mundo Eletric Ladyland você pode seguir para o Blue Train, do John Coltrane, ou para o Kind of Blue, do Miles Davis. Às vezes, não poucas, confundo esses dois álbuns, talvez pelo fato de o Coltrane estar em ambos.

E a exemplo do Eletric Ladyland, o Kind of Blue e o Blue Train possuem singularidades, cada um com a sua atmosfera, planetas azuis para onde o viajante só não vai se não quiser.

Compromissos de 2019 criaram novo percurso em meu cotidiano: a rua Alberto Folloni, exatamente no ponto em que está situado o prédio cor de laranja onde o Jamil Snege passou os seus últimos anos.

Ele partiu em 2003, portanto há um silêncio de mais de uma década. E todo dia lembro do Jamil, de alguma situação em sua agência na Rua Isaías Beviláqua, de conversas em meio a café, gargalhadas e cigarros, de observações dele sobre livros e autores (o Jamil me apresentou, entre outras vozes, Philip Roth e Ian McEwan) e especialmente da amálgama que nos aproximou: o hábito de observar atentamente e comentar a comédia-tragédia humana, sobretudo a dos humanos mais próximos.

Dezesseis anos distante, a memória se liquefaz e é por meio dos livros que ele escreveu e publicou, como Viver é prejudicial à saúde e Como eu se fiz por si mesmo, que viajo para o mundo de Jamil Snege. A exemplo de Hendrix, Coltrane e Davis, entre tantos cronópios, o Jamil também inventou um universo com linguagem, em que há, entre outras singularidades, precisão, ironia, surpresa e, admiravelmente, nenhum momento de pieguismo – talvez por isso mesmo que a prosa e a poesia dele têm a potência de emocionar leitores e leitoras.

Mas, enfim, é a partir das dezessete horas que passo na Alberto Folloni e lembro do Jamil, de sua obra e do nosso convívio, tão distante, agora inacessível. E isso se dá justamente em um fragmento do dia em que a noite, com sua beleza e horror, se insinua, mas ainda está distante. É quase o final do expediente, pais e mães buscam os filhos na escola, não há tantos carros nas ruas nem pedestres demais nas calçadas. A jornada padrão vai se encerrar, um fio de alegria está solto e, quando não chove nem dá em nublado, é num cenário azul, em outro Kind of Blue e até mesmo em um alternativo Blue Train, que viajo. Especialmente se foi possível fazer entre catorze e dezesseis horas a sesta, de onde despenco para caminhar sem a noção exata do limite entre o sonho e esse mundo aí, o da rua. Para, enfim, de repente driblar o mapeamento das expectativas e códigos programados. E seguir.

Texto que escrevi para a Ideias, de maio de 2019, com ilustração do Vitor Mann.

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