Jógi

Jógi está na sala, cortinas fechadas, só. Sozinho ele fala o tempo passa lentamente há tantos dias, isso não é castigo, talvez um pouco, completa. O estoque de bebida e comida pode durar, dependendo da fome e da sede, três, quatro semanas. Um luxo, comenta para si mesmo Jógi nesta temporada de assim estar, abril-maio.

Notícias na tela do celular, a televisão segue desligada, o Youtube em um computador com caixas de som atualiza o repertório de Jógi. Às vezes dança, sorri e sabe que se tropeçar e bater a cabeça no chão ou se sofrer ataque cardíaco, o seu corpo pode vir a ser encontrado depois que essa aparente pausa passar.

A persiana do quarto onde Jógi dorme está quase fechada, mas há espaço para ele ver cem, duzentos?, centenas de pássaros pretos no gramado de uma casa do outro lado da rua. Lá funciona um escritório atualmente sem atividade como quase toda a cidade – as aves buscam alimento, repouso e em seguida estão nos fios sustentados pelos postes, cena Hitchcock, com outro efeito, pelo menos para Jógi, supostamente em segurança dentro de seu apartamento.

Nos cento e poucos metros quadrados onde passa a maior parte do dia, noite e madrugada, Jógi só tem contato com ele mesmo e os seus fantasmas. Mas sai para encontros, até agora com uma mulher de cada vez – e não sabe se elas, a exemplo dele, encontram-se com outros parceiros.

Jógi tem quase certeza de que Karina deve ter outros homens, Melissa não fala sobre o assunto, Luma, Jógi supõe, é amante do Kiko, do Thales e do Kadu, um dos preferidos da Nara, com quem Jógi também se encontra por alguns minutos, no apartamento dela, mais de uma vez por semana.

Quase todas as noites Jógi dirige o seu carro nas ruas quase sem carros e pedestres, se parar em uma blitz pode dizer é o meu trabalho, preciso circular, olhe aqui, por favor, meu documento permite vir e ir, voltar, agradeço toda atenção.

As mulheres com quem Jógi se encontra, os homens que encontram-se com essas mulheres, e outras pessoas, outros, nem tantos assim, elas e eles possuem contatos, contratos, crédito e, por isso, por causa dos bônus, podem descumprir as regras do isolamento.

Mas, Jógi sabe, ele pode se contaminar, se é que já não está. E se estiver, tem noção, em alguns dias, poucos, pode ter início a sua ruína.

Jógi fala que queria ser pássaro negro e voar, neste contexto, pelo menos até ontem, pássaros estão imunes, não se contaminam, e Jógi queria mesmo ser “Black Bird”, igual aos que viu pela janela, cena Beatles, violões, a voz do Paul, White Album todo dia ligado no som, o estádio cheio há mais de um ano, hoje a rua vazia: “Blackbird singing in the dead of night/ Take these broken wings and learn to fly/ All your life/ You were only waiting for this moment to arise// Blackbird, fly, blackbird, fly/ Into the light of the dark black night/ Blackbird, fly, blackbird, fly/ Into the light of the dark black night”.

Meu conto publicado na Ideias, dia 20 de abril de 2020, com ilustração do Vitor Mann.

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