Gudzins


Fernando ganhou o equivalente a um prêmio acumulado da Mega-Sena. Não foi herança, apropriação de patrimônio alheio, furto, roubo ou rendimento de atividade ilegal – uma quantidade de dinheiro inesperada surgiu. E desde então sua realidade, evidentemente, é outra.

Está isolado em uma cobertura, no vigésimo segundo andar de um prédio em um bairro situado a quinze minutos do centro. 

Poderia viajar e escolher outro lugar no mundo para viver, mas gosta da cidade onde nasceu e, até sem oportunidades, sobreviveu.

Morar em um imóvel amplo, com piscina, churrasqueira, piso aquecido, adega, suíte com banheira de hidromassagem, quatro quartos, outras quatro salas e, especialmente, ter dinheiro para saciar, em tese, qualquer desejo é a realização de um sonho que o faz-tudo mal remunerado não cogitava que pudesse vir a se tornar sua realidade. 

Até o mês passado, conseguiu passar dias, manhãs, tardes, noites e madrugadas sem ficar entediado. Comprou esteira e equipamentos para fazer musculação. Usufruía o tempo com canções, filmes, na piscina, na cama, no sofá, dentro dos mais de quatrocentos metros quadrados. Funcionários buscavam bebida, comida e até drogas.        

Teve, inclusive, acesso a catálogos para solicitar o serviço de garotas de programa, geralmente durante as manhãs – elas entravam e saíam do seu apartamento sem levantar suspeita de vizinhos, do porteiro e da síndica, e talvez tenham sido consideradas amigas, grandes amigas do morador recluso.  

Então, no final do mês passado, decidiu caminhar pelo bairro. Fernando tem quase certeza de que a temporada de reclusão foi suficiente para ele ser esquecido. Sequestradores e outros criminosos, incluindo também conhecidos que poderiam pedir dinheiro emprestado, já devem ter outros alvos.   

Após anos dentro do apartamento, Fernando desceu – enfim – pelo elevador, cumprimentou o porteiro e saiu. Quase não reconheceu a cidade, casas antigas foram demolidas, surgiram outros prédios, entre tantas modificações urbanas, mas encontrou uma banca, onde anteriormente comprava jornais.      

Já não há mais diários na cidade.        

Foi a um café, bebeu cerveja de abacate, depois água com gás e ainda comeu profiteroles.       

A experiência de andar pelo bairro deixou Fernando excitado. Conseguiu permanecer no apartamento por dois dias, mas, no terceiro, não resistiu. Caminhou novamente por algumas ruas, bebeu cerveja de abacate em um bar e viu espalhados pela região os – sem outra expressão para nomear – Gudzins.      

Fernando continuou saindo e em todos os percursos percebeu cada vez mais a presença dos Gudzins. Pareciam pessoas e deveriam sentir necessidade de bebida, comida, cerveja de abacate, profiteroles, sexo, descanso, água com gás, evacuação, viagem, acesso à internet e paraísos artificiais.

Mas ao invés, por exemplo, de entrar em movimento, os Gudzins permaneciam deitados, sentados ou em pé, parados, paralisados, em frente a lojas fechadas, muros, embaixo de marquises e pontos de ônibus ou nos gramados de parques e praças.  

A presença dos Gudzins fez com que Fernando diminuísse as caminhadas e, ao perceber que eles estavam em todas as ruas, ele desistiu de circular nas vias públicas. Decidiu permanecer apenas dentro de seu apartamento, de onde poderia observar, do vigésimo segundo andar, a cidade.      

Ontem, ao ver na televisão uma campanha solicitando ajuda para homens, mulheres e crianças que passam necessidade em países distantes, fez a transferência de dinheiro online e, em seguida, comeu carne, bebeu vinho e cerveja de abacate, mergulhou na piscina e desfrutou de tudo o que acredita ter direito ali, isolado de quase todos, especialmente dos Gudzins.
        
Meu conto publicado na Revista Ideias de setembro de 2018, com ilustração do Vitor Mann.

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