Repolho sai de cena
Acordo
e é tão bom estar, de fato, acordado. Escapo de um pesadelo com enredo
absolutamente assustador, prefiro até esquecer. Meu coração bate tanto, não
desacelero. Dormindo ou acordado, tanto faz, sigo tenso o tempo todo.
Então,
em frente ao Café Pequeno, vejo a Escuta. Olho para a calçada, quero evitar
contato visual, mas ela me vê e pronuncia em voz alta o meu nome: Repolho!
Foram
sete, ou mais?, minutos que demoraram para passar.
Perguntou
o que ando fazendo e, evidentemente, desconfiei que se referia ao crime que
cometi semana passada. Eu disse estar atrasado, a Escuta queria saber se era
para um encontro, comentei que tinha compromisso e ela falou cuidado para não
se comprometer, o que me deixou ainda mais noiado.
Estou
na Praça Glú-glú-ié-ié e quase fico tranquilo por não encontrar conhecidos. Mas
se não identifico nenhuma pessoa, alguém pode estar observando os meus passos,
o que não é nada bom, ao contrário.
Sigo
por ruas ao acaso, aparentemente sem destino temporário, e entro em uma
pastelaria. No balcão, peço um especial de carne e ovo, refrigerante, sento em
uma cadeira. Olho para o lado esquerdo e, coincidência?, vejo o Baiúca. Nos
cumprimentamos, ele sorri e pergunta o que estou fazendo. Digo que tenho fome,
o Baiúca pede informações sobre minhas atividades, permaneço em silêncio, e o
sujeito diz que tem sonhado comigo.
Um
garçom traz o pastel e o refrigerante, dou mordidas no salgado e goles na
bebida, e o Baiúca faz perguntas que não respondo.
Nunca
fui entrevistado e, sei lá, isso que acontece agora, em vez de uma entrevista,
deve ser algo que se aproxima de um interrogatório.
Termino
o pastel e o refrigerante, e digo ao Baiúca que preciso sair. Ele pergunta para
onde vou e com que finalidade, comento que é urgente e tenho pressa, o Baiúca
segura em uma de minhas mãos, a direita, e afirma que a pressa é inimiga da
perfeição.
Não
quero ser perfeito e já estou caminhando.
Desconfio
que o Baiúca sabe o que fiz semana passada, mas não quero pensar nisso. Preciso
esquecer e apenas andar.
E em
toda rua por onde passo vejo conhecidos, como o Lambe, a Jira, o Fióte, a
Pochete, o Haxa, a Gorda Loka, o Suinaca Monturo e o Mauro Mensagem, entre
tantos. Abaixo a cabeça, aumento a extensão de meus passos e escuto cada um e
todos eles pronunciando o meu nome: Repolho, ei Repolho!
Começo,
finalmente, a correr. Pessoas olham, alguns agarram a mochila, o celular ou a
mão de um filho. Esbarro em pedestres, derrubo dois ou três, quase me
desequilibro ‒ tenho a impressão de que alguém passou a perna em mim, e,
apesar disso, e de outras coisas, me movimento em velocidade acima da média,
pelo menos em relação a minha média, os três quilômetros por hora.
Cada
passo é um temor, terror, posso estar em terreno minado, com armadilhas sem
fim, mundo inimigo. Por isso, estou correndo. Correr, fugir, sabe-se lá para
onde, mas correr ‒ é isso. Vou em frente. Até o
limite de minhas energias e, creio, tenho energia suficiente para ir bem
distante, longe daqui.
Tchau.
Meu conto publicado na edição de novembro de 2018 da Ideias com ilustração do Vitor Mann.
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