De olhos bem fechados
Patrícia
entra na loja. Um dos funcionários, o Jean, pergunta em que pode ajudar. A
engenheira diz que recebeu solicitação por e-mail para atualizar pessoalmente
informações no sistema. Jean comenta que ela será a próxima a ser atendida.
Patrícia sorri, permanece em pé e, em menos de cinco minutos, outro
funcionário, o Lucas, pede para a cliente seguir até uma estação de trabalho,
onde tem um computador em cima de uma mesa e duas cadeiras, em uma das quais
Patrícia senta.
Philip,
outro vendedor, chama Lucas, que levanta e diz para Patrícia:
–
Já vou te atender.
Lucas
vai até a estação de trabalho em que Philip atende outra cliente, e os dois
colegas de trabalho conversam por dois ou três minutos.
Patrícia
observa a loja. Oito, nove, dez, onze, mais, quatorze, quinze, outras, são
vinte e cinco estações de trabalho.
Lucas
retorna e, antes de sentar, afirma:
–
Agora eu vou te atender.
Patrícia
conta que recebeu mensagem solicitando que ela atualizasse dados pessoais
diretamente em uma loja da empresa.
Lucas
pede documentos, Patrícia entrega o RG e uma conta de luz, o funcionário sorri,
começa a digitar, mas recebe uma chamada em seu telefone celular, pede licença,
atende, levanta da cadeira e anda pelo interior da loja.
Patrícia
sente vontade de levantar e sair. Mas começa a chover e ela está sem guarda-chuva. Lucas continua no celular. A engenheira fecha os olhos e surge em
seu imaginário um pássaro sem asas.
O
pássaro despenca dos vinte, trinta metros, altura onde estava quando, de um
segundo para o outro, perdeu as asas. A ave mergulha sobre um coletivo que
marcha. No caso, em cima de uma das centenas de capivaras que seguem por uma
avenida reivindicando mais dias de sol, luz e calor. Cartazes sinalizam que as
capivaras estão cansadas de dias cinzas, às vezes com garoa e chuva.
Antes
de tocar o asfalto, o pássaro acerta e machuca uma capivara, mas não interrompe
o fluxo da marcha, que, no imaginário de Patrícia, ou talvez até mesmo em
alguma realidade, a impede de atravessar uma das avenidas mais movimentadas do
centro.
Após
passar a última capivara, surge outra marcha: a dos cronópios. Patrícia
continua onde está, de olhos fechados – na avenida, e de olhos abertos, na
loja, sem ser atendida pelo funcionário que conversa no celular e parece ter
dito ao interlocutor:
–
O sistema está travado, mas é assim mesmo, o sistema é…
De
olhos bem fechados, ela vê passar a marcha dos cronópios, que nada exigem, e eles são substituídos na avenida por outras marchas, ininterruptas, todas com
reivindicações. São os nonôs, as cantoras de bigode sem voz, as cantoras de
bigode com voz mas sem palco, os momos, as monas, os nemos, os fófis, os famas
e os queijos. Estes são coordenados pelo gouda, que convenceu outros queijos,
do roquefort ao brie, a pedalar – portanto, eles realizam uma marcha sobre duas
rodas.
Surge,
enfim, a marcha dos inocentes úteis e Patrícia segue – de olhos fechados – o
grupo, o que para ela não é o ideal, mas o possível, melhor, por exemplo, que
permanecer onde está, parada e aparentemente sem oportunidade de ação.
Depois,
ela pode, se for o caso, remar contra a maré em uma canoa furada, mas – agora –
Patrícia se deixa levar.
Comentários
Postar um comentário