Bicicletas de Curitiba

 

Minhas pernas doem, espero que não seja um problema nos músculos, mas, enfim, pedalo nessa rodovia que vai me levar até o meu amor. Chego suada, ele gosta e diz que até prefere assim. Fazer o que? Se eu morasse em Curitiba, tudo seria diferente. Mas sou de Piraquara que, na real, é logo ali.

 

Poderia vir de carro, mas desde que conheci o Bernardo estou pedalando. Ele curte esse lance de cicloativismo, novos modais, menos carros, mais gente de bike nas ruas.

 

Me apaixonei pelo Ber, apesar de a gente nunca ter transado. Ele sofre de disfunção erétil. É broxa. E mesmo sem transar estou a fim. O Ber me abriu um novo horizonte. É a primeira vez que namoro um carinha que curte esse som e, mais que tudo, essa visão de mundo pós-Los Hermanos.

 

Sigo nessa rodovia, está demorando, e lembro que há alguns meses eu morava em Campo Largo e também tinha que pedalar por uma rodovia pra chegar até o Nonô, que é como eu chamo o Ber quando ficamos juntos — o que, lamento, não está acontecendo ultimamente.

 

Ele gosta, demais, de frequentar eventos a céu aberto. E eu o acompanho. Tem réveillon fora de época, bloco de carnaval no centro histórico, cerveja, vina e manjubinha na calçada. Muita gente participa e, não fosse pelo Ber, talvez eu não tivesse acesso. Os homens, em sua maioria, usam o mesmo uniforme: all star, jeans, camisa de brechó ou camiseta de banda e barba. As mulheres vão de saia, sandália e unhas por fazer. Tenho a impressão de que eles, e elas também, não tomam banho todos os dias.

 

Mas o que me chama atenção é o comportamento desses caras: andam devagar, quase se arrastando, falam baixinho, pra dentro, sorriem e dão a impressão de serem molinhos, a começar pelo aperto de mão. O Ber é assim. Os amigos e os conhecidos dele também são.

 

Um ônibus buzina e quase perco o controle. Preciso prestar mais atenção no trânsito.

 

A Bruna, uma de minhas melhores amigas, diz que estou cometendo um equívoco. Ela acha que esses caras, o Ber e os amigos dele, são todos uns frouxos, e eu ainda nem contei, pra ela, que o Ber é broxa. Ou melhor, está broxando — pelo menos é o que ele fala pra mim.

 

“Mas vai passar, tenha certeza. E não tenha pressa. Eu te amo”, ele sussurra nos meus ouvidos.

 

A Juzinha, minha amiga desde a infância, insiste para eu me afastar desses caras, na opinião dela, uns losers que se assustam com a ideia de casar, ter filhos, conseguir um bom emprego e, enfim, assumir a vida adulta.

 

Acabei me afastando da Juzinha. Tenho outra opinião.

 

Já namorei playboy, executivo, surfista, pós-graduado, uns canalhas, brutos e insensíveis. Estou em uma das melhores fases da minha vida profissional, com um salário que nunca imaginei que iria receber e quero mais é viver com gente relax.

 

Nunca presenciei briga nesses eventos a céu aberto.

 

Acho que a turma do Ber é da paz. 


A Mari já me perguntou: o que será que eles fazem com a agressividade? Não tenho a resposta. Sei que escutam as canções do Cícero, do Jeneci, do Apanhador Só e de Todos os Caetanos do Mundo.

 

Agora, estou em Curitiba — essas viagens de bike são ótimas, e perigosas, mas penso durante a ida e a volta, e isso é valioso.

 

O que está acontecendo? Por que toda essa movimentação em frente ao apartamento do Ber?

 

— Sim. O meu nome é Cassandra.

 

Um policial conversa comigo. Deixo a bicicleta no muro, sento na calçada e alguém me entrega uma garrafa de água mineral. Bebo um, dois, três goles. Não sei se entendi, exatamente, o que o policial disse.

 

Há algumas horas um motorista seguiu dois ciclistas após receber uma fechada em uma avenida do centro. O condutor do Fox foi tirar satisfação, levou duas facadas e morreu dentro da ambulância, antes de chegar ao hospital. Um dos ciclistas se chama Roberto. O outro é o Ber. Eles fugiram.

 

E isso não é tudo.

 

Na quinta-feira da semana passada um homem de 89 anos estava caminhando na faixa de pedestre, foi atingido por um ciclista e morreu. O acusado é o Ber, o meu Ber, que, de acordo com a polícia, responderá, neste caso, por homicídio culposo.

 

O policial que falou comigo também disse que o Ber e os seus amigos são investigados, há algum tempo, na operação Cara Estranho, que apura crimes cometidos contra pedestres, incluindo atropelamentos, sobretudo à noite, em ciclovias.

 

Fui intimada, vou ter que prestar depoimento e começo a desconfiar que estou dentro de um pesadelo de onde eu gostaria de sair imediatamente e acordar, agora, na minha cama, se possível, ao lado do Ber, daquele Ber fofinho, molinho e broxa, mas da paz.

 

Publicado em Mais laiquis (2015), o meu quarto livro de contos.

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