Fluxo
O
Fluxo morreu. A notícia é compartilhada no Face e em blogs de amigos e amigas
dele. Por enquanto, ninguém fala sobre a causa, apenas o fato é lamentado. O
Fluxo tinha quarenta e nove anos.
Nos
comentários divulgados em redes sociais, conhecidos repetem que o Fluxo era
bom em tudo, inclusive em elaborar considerações maldosas. Mas, os amigos
afirmam, ele sabia conversar, escrever, desenhar, surfar, tocava piano e
conhecia jazz, música clássica, MPB, cinema norte-americano, literatura
japonesa, inglesa, francesa, brasileira e paranaense.
Já
as amigas ressaltam que o Fluxo era um sujeito incrível, gentil e sedutor,
delicado inclusive com as ex-namoradas, com quem seguia dialogando mesmo após o
fim da relação.
Uma
ex, a Monalisa, salientou que o Fluxo tinha qualidades, muitas, inclusive por
não cozinhar, na opinião dela, tendência que estraga os homens no tempo
presente.
Xarlí
e Bitola entram, neste momento, em um dos quartos do Pop Rock, um hotel de
alta rotatividade. Xarlí apalpa as pernas do Bitola, que não se deixa prender.
—
Hoje não, meu amor.
—
Como não?
—
Precisamos conversar.
—
Como é que é?
—
O seu amigo morreu.
—
Você quer apenas conversar?
—
Sim.
—
Então, vamos no Café Arrombassi...
Xarlí
era amigo do Fluxo, mas Bitola não. Xarlí é psicólogo e Bitola ganha a vida
como gerente de estoque em um mini-mercado. Eles mantêm uma relação, no
momento, clandestina. Mas pretendem assumir o namoro em breve. Por enquanto,
transam e se beijam apenas dentro de algum quarto do Pop Rock. Conversar eles
conversam em qualquer ambiente, principalmente no Café Arrombassi, e, ao saber
que o Fluxo morreu, Xarlí convidou Bitola para acompanhá-lo no velório.
Mas
Bitola não gosta, não gostava, nunca gostou do Fluxo e queria explicar ao
namorado os motivos da antipatia. Xarlí sugeriu o Pop Rock, o que incluiria
pelo menos uma transa, mas eles estão no quarto e Bitola está a fim é de falar,
pelo menos por enquanto.
—
Eu não gostava dele.
—
Por que, meu amor?
—
Xarlí, o Fluxo era radical!
—
Da boca pra fora.
—
Mas ele vivia implicando.
—
Era um personagem que ele fazia.
—
Sério?
—
Na real, o Fluxo era boa gente.
—
Me provocava.
—
Era demonstração de amizade.
—
Demonstração de amizade? Ele dava indiretas.
—
Tudo cena.
—
Mas ele era o contra o gerúndio.
—
Bitola, minha bitolinha.
—
Ele me zoava, sempre usei gerúndio pra...
—
Não era pessoal!
—
Não?
—
É que teve uma onda de gerúndio em telemarketing, um excesso do uso, daí ele
criticava. Mas não era pessoal, te garanto.
—
Garante?
—
Sim, venha aqui.
Bitola
e Xarlí se beijam, Bitola caminha em direção à janela, senta em uma cadeira e
começa a falar. Comenta que o Fluxo gostava de promover discussões que, em sua
opinião, não geravam nada, a não ser encrenca. Xarlí diz que a confusão, às
vezes, é necessária, que ficar bagunçado é gostoso, e sorri. Bitola não ri,
pede para continuar e pergunta se Xarlí lembra de uma conversa a respeito de
jazz.
Xarlí
diz que não tem como esquecer aquele bate-boca, entre outros encontros
inesquecíveis protagonizados pelo amigo que se foi. Bitola fica com o semblante
ainda mais sério e conta que, depois que o Fluxo começou a falar sobre jazz,
ele decidiu conhecer o som de Miles Davis, Chet Baker, Coltrane, Count Basie,
Charles Mingus, Thelonious Monk, Dizzy Gillespie e outros. Quanto mais escutava,
mais se sentia confuso, sem assimilar a linguagem. Não conseguia diferenciar o
repertório de nenhum dos mestres do gênero. O pior, para Bitola, era não
elaborar algo a respeito de jazz para dizer ao Fluxo quando encontrasse o
sujeito.
—
Só conheci essa besta por sua causa, Xarlí!
—
Ô, Bitola, o Fluxo morreu, respeita o cara!
—
Mas você sabe que ele não me respeitava.
—
Meu amor, ele tinha os problemas dele.
—
E quem é que não tem problemas?
—
O Fluxo estava tentando abandonar a cocaína.
—
Sério?
—
Era compulsivo. Bebia e cheirava.
—
Por que você nunca me contou?
—
Pensei que você soubesse.
—
Eu?
—
Mas isso não faz diferença.
—
Claro que faz!
—
Bitola, minha bitolinha, vem cá!
Bitola
se aproxima de Xarlí, eles se abraçam e Bitola anda, para, olha para o alto,
para o chão, gesticula, senta na cama, levanta e volta a caminhar.
Em
movimento, de braços, mãos e lábios, diz para Xarlí que ele, Bitola, ficou
indignado quando o Fluxo, depois de falar sobre jazz por quase um ano, disse
que o jazz não era grande coisa. O Fluxo, então, começou uma nova campanha pela
música clássica, especificamente a favor do legado de Johann Sebastian Bach.
—
Bitolinha!
—
O que foi, amor?
—
Te amo quando você me chama de amor!
—
Xarlí, aquele seu amigo deu um nó na minha cabeça.
—
Quem?
—
Esse, o que morreu.
—
Do que você está falando?
—
O mala fez apologia ao jazz, depois negou tudo e começou a falar sobre Bach.
— E
daí?
—
Você sabe, né?
—
Não sei.
—
Me senti um lixo, um nada.
—
Releve, meu amor, releve.
—
O Fluxo falava que quem não conhecia Bach era um rebotalho.
—
Bitola, o Fluxo está morto.
—
Mas ele me azucrinou tanto.
—
Esquece.
—
Esquecer?
—
Esquece, esquece e vem.
Após
um alguns beijos, que anunciavam ereção, Bitola se afasta de Xarlí para
repetir que o Fluxo o incomodava. Ele diz ter tentado conhecer Bach, mas não
conseguia escutar uma cantata até o final. Bitola afirma que está acostumado
demais com canções populares, o jazz até que foi possível escutar, mas o
repertório de Bach se revelou, para ele, inviável.
—
Passei a me sentir ainda mais ignorante.
—
Mas você não precisa mais pensar nisso.
—
Por quê, Xarlí?
—
Já passou, Bitola.
—
Mas eu ainda...
—
Esqueça, o Fluxo não pode mais te incomodar.
—
É, realmente.
—
E então?
—
Ei, Xarlí, tenho uma proposta.
—
Uma proposta?
—
Tenho sim.
—
Então, diga, meu amor.
—
Vamos ignorar o Fluxo.
—
Ignorar?
—
Isso.
—
Como?
—
A partir de agora, ele deixa de existir pra nós.
—
De fato, ele morreu.
—
E nós não vamos no velório.
—
Por quê?
—
Nem no velório, nem no enterro.
—
Por quê?
—
Vamos ficar aqui.
—
Aqui?
—
Qual o motivo?
—
Celebrar a vida!
—
Sério?
—
Celebrar o nosso amor. Me beija?
—
Bitola!
—
Vem cá, Xarlí!
Publicado
em meu sétimo livro de narrativas, A
certeza das coisas impossíveis (Tulipas Negras, 2018).
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