Nocaute

 

Inicialmente sorria. Irritou-se, cenho franzido depois. Também seguiu pelos corredores, café, bate-papo, cigarro e bocejo. Dois ou três minutos do clique até o Word abrir. A espera pelo Google e para conferir e-mails ultrapassava cinco, seis, sete minutos.

 

Disse para si mesma que nesses intervalos poderia ler a Ilíada, Dom Quixote, Moby Dick e Alice no país das maravilhas. E leu as obras de Homero, Cervantes, Melville, Carroll e outros autores enquanto esperava para usar o computador e trabalhar no trabalho.

 

Duda também conheceu canções, conferiu Instagram, reportagens e memes – fez frilas, revisão e escreveu textos dentro da empresa. O Benja, o Leo e o Flávio, colegas da Duda, receberam no escritório clientes de seus próprios e pequenos negócios – isso tudo antes do início da pandemia.

 

Napa, o dono da empresa, contratou um ineficiente serviço de conexão de internet com a finalidade de deixar os funcionários quase off-line. Desconfiava, mas não poderia prever que eles, de fato, usariam o horário de trabalho, e o escritório, para fazer outras transações.

 

Mas o empreendedor, mais do que tudo e quase todos,

empreende e precisa do CNPJ e, principalmente, de uma fachada para realizar proveitosos negócios.

 

Dias antes da mudança de comportamento provocada pelo coronovírus, os funcionários pretendiam pedir autorização para usar duas salas do imóvel, até aquele

momento desocupadas. A maior, ideia do Benja, poderia ser transformada em academia de ginástica. Já a menor, sugestão do Leo, seria perfeita para amantes.

 

Benja, Leo, Flávio, Duda e outros funcionários também gostariam de falar sobre o imóvel com o Napa, que este ano passou no escritório apenas na semana do Carnaval. Francisca, a secretária, comentou que o proprietário, o Amadeu, está reclamando do não pagamento do aluguel há meses, tem dois ou três interessados – para Duda, Flávio, Leo, Benja e os outros colegas a localização do escritório é perfeita.

 

Leo ainda gostaria que o Napa contratasse um serviço de acesso à internet mais eficiente, mas, de acordo com a Francisca, há outras dívidas, e Leo tem consciência de que há prioridades em uma eventual conversa dos funcionários com o dono da empresa.

 

Napa sempre resolveu impasses. Na véspera de cancelamentos e durante perrengues, entrou em cena e gol. Mas agora há parceiros fora de combate, aliados romperam relações e o Napa tem cada vez menos energia, sobretudo desde que testou positivo para a Covid-19.

 

Mesmo aproveitando o tempo e o escritório para fazer tanto, Duda tinha reivindicações, mas, enfim, esqueceu o que poderia solicitar ao Napa. Há dois dias, o que a fez esquecer eventuais solicitações ao proprietário e outras urgências foram os movimentos repetitivos na parte superior esquerda da tela do computador da empresa.

 

Ao esperar, por horas, pela abertura de um programa, um círculo – menor que uma moeda de dez centavos – rodando da esquerda para direita a hipnotizou e, ninguém sabe se temporária ou definitivamente, ela está imóvel, não pisca, não come, não bebe, deixou de sorrir, mas ainda respira – ainda.

Meu conto publicado na Revista Ideias em julho de 2020 com ilustração do Vitor Mann.


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