Lar,
Hoje tem Lar,
(Companhia das Letras, 2009), do Armando Freitas Filho:
"O mar desengonçado/ de quem não sabe nadar/ à
frente da casa inquietante/ aterrada pela noite, permitindo/ ruídos não
decodificáveis."
É um fragmento, citado aleatoriamente, da primeira parte
do livro.
Outro trecho do mesmo texto poético que segue por 17 páginas:
"Começar o escrever era descrever./ Descrever era
desmanchar o que está escrito./ O que estava à vista, parado/ no pensamento, no
jardim/ e reescrever, de outra forma/ em outra fôrma, o novo curso e rasgo./
Escrever é desespera e espera."
Experiente, publicando desde a década de 1960, sofisticado,
Armando Freitas Filho dá a impressão (pelo menos para mim) de que a sua poesia traduz
o que é a beleza, a dor, o intangível, o inominável, possível perfeição.
Toda força da linguagem e repertório operam em
"Primeira série", fragmento inicial do livro, reconstituição da infância
e adolescência, em que alguns dos principais cenários foram uma casa na cidade
do Rio de Janeiro e ainda outra residência familiar na região serrana.
O tempo nunca idílico (antes, amargo) que se foi, jamais
recuperado plenamente, nem pela memória, é sinônimo de desconforto:
"Meu corpo é o meu mal/ mal amanhece me manda/ ao
desfecho do dia, mal me/ suporta, malmequer, me/ amaldiçoa – mau – me morde/
amor, mesmo sem paixão maior."
A incontornável aflição do crescimento é inesquecível,
questão desviada, mas insistentemente retomada durante esse poema, como já foi mencionado,
que segue quase por 20 páginas:
"Aceitar o horror do meu cheiro, estranho/
descoberto na treva do socavão da infância./ Aturar o fantasma do meu hálito de
açúcar e tártaro./ O outro não sou eu: é o meu corpo, sem controle/ que cresce
diante da tevê franzida".
A mesma temática, com algumas variações, é retomada nas
duas outras partes de Lar, – em
textos poéticos menos extensos do que o poemas inicial, todos intensos, como
"Em família" ("Tanto amor, mas não total."), "No
espelho" ("Por baixo da carne, meu pai/ me invade. Surde, aos
poucos:/ nas unhas estriadas, pela veia/ visível e grossa"), e
"Aliança" ("Mortos e enterrados, mas neles esbarro/ no
despenhadeiro de cada dia.")
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