XVII | Do trapézio e outras cousas | Memórias póstumas de Brás Cubas, do Machado de Assis
...
Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos. Meu
pai, logo que teve aragem dos onze contos, sobressaltou-se deveras; achou que o
caso excedia as raias de um capricho juvenil.
– Desta vez, disse ele – vais para a
Europa; vais cursar uma Universidade, provavelmente Coimbra; quero-te para
homem sério e não para arruador e gatuno.
E como eu fizesse um gesto de espanto:
– Gatuno, sim senhor; não é outra cousa
um filho que me faz isso...
Sacou da algibeira os meus títulos de
dívida, já resgatados por ele, e sacudiu-mos na cara.
– Vês, peralta? É assim que um moço
deve zelar o nome dos seus? Pensas que eu e meus avós ganhamos o dinheiro em
casas de jogo ou a vadiar pelas ruas? Pelintra! Desta vez ou tomas juízo, ou
ficas sem cousa nenhuma.
Estava furioso, mas de um furor
temperado e curto. Eu ouvi-o calado, e nada opus à ordem da viagem, como de
outras vezes fizera; ruminava a ideia de levar Marcela comigo. Fui ter com ela;
expus-lhe a crise e fiz-lhe a proposta. Marcela ouviu-me com os olhos no ar,
sem responder logo; como insistisse, disse-me que ficava, que não podia ir para
a Europa.
– Por que não?
– Não posso – disse ela com ar dolente
–; não posso ir respirar aqueles ares, enquanto me lembrar de meu pobre pai,
morto por Napoleão...
–
Qual deles: o hortelão ou o advogado?
Marcela franziu a testa, cantarolou uma
seguidilha, entre dentes; depois queixou-se do calor, e mandou vir um copo de
aluá. Trouxe-lho a mucama, numa salva de prata, que fazia parte dos meus onze
contos. Marcela ofereceu-me polidamente o refresco; minha resposta foi dar com
a mão no copo e na salva; entornou-se-lhe o líquido no regaço, a preta deu um
grito, eu bradei-lhe que fosse embora. Ficando a sós, derramei todo o desespero
de meu coração; disse-lhe que ela era um monstro, que jamais me tivera amor, que
me deixara descer a tudo, sem ter ao menos a desculpa da sinceridade;
chamei-lhe muitos nomes feios, fazendo muitos gestos descompostos. Marcela
deixara-se estar sentada, a estalar as unhas nos dentes, fria como um pedaço de
mármore. Tive ímpetos de a estrangular, de a humilhar ao menos, subjugando-a a
meus pés. Ia talvez fazê-lo; mas a ação trocou-a noutra; fui eu que me atirei
aos pés dela, contrito e súplice; beijei-lhos, recordei aqueles meses da nossa
felicidade solitária, repeti-lhe os nomes carinhosos de outros tempos, sentado
no chão, com a cabeça entre os joelhos dela, apertando-lhe muito as mãos;
ofegante, desvairado, pedi-lhe com lágrimas que me não desamparasse... Marcela
esteve alguns instantes a olhar para mim, calados ambos, até que brandamente me
desviou e, com um ar enfastiado:
– Não me aborreça – disse.
Levantou-se, sacudiu o vestido, ainda
molhado, e caminhou para a alcova.
– Não! – bradei eu –; nas há de
entrar... não quero...
Ia a lançar-lhe as mãos; era tarde; ela
entrara e fechara-se.
Saí desatinado; gastei duas mortais
horas em vaguear pelos bairros mais excêntricos e desertos, onde fosse difícil
dar comigo. Ia mastigando o meu desespero, com uma espécie de gula mórbida;
evocava os dias, as horas, os instantes de delírio, e ora me comprazia em crer
que eles eram eternos, que tudo aquilo era uma pesadelo, ora, enganando-me a
mim mesmo, tentava rejeitá-los de mim, como um fardo inútil. Então resolvia
embarcar imediatamente para cortar a minha vida em duas metades, e deleitava-me
com a ideia de que Marcela, sabendo da partida, ficaria ralada de saudades e
remorsos. Que ela amara-me, a tonta, devia de sentir alguma cousa, uma
lembrança qualquer, como do alferes Duarte... Nisto o dente do ciúme
enterrava-se-me no coração; toda a natureza bradava que era preciso levar
Marcela comigo.
– Por força... por força... – dizia eu
ferindo o ar com uma punhalada.
Enfim, tive uma ideia salvadora... Ah!
Trapézio dos meus pecados, trapézio das concepções abstrusas! A ideia salvadora
trabalhou nele como a do emplasto (capítulo II). Era nada menos que fasciná-la,
fasciná-la muito, deslumbrá-la, arrastá-la; lembrou-me pedir-lhe por um meio
mais concreto do que a súplica. Não medi as consequências; recorri a um
derradeiro empréstimo; fui à rua dos Ourives, comprei a melhor joia da cidade,
três diamantes grandes, encastoados num pente de marfim; corri à casa de
Marcela.
Marcela estava reclinada numa rede, o
gesto mole e cansado, uma das pernas pendentes, a ver-se-lhe o pezinho descalço
de meia de seda, os cabelos soltos, derramados, o olhar quieto e sonolento.
– Vem comigo – disse eu –, arranjei
recursos... temos muito dinheiro, terás tudo o que quiseres... Olha, toma.
E mostrei-lhe o pente com os
diamantes... Marcela teve um leve sobressalto, ergueu metade do corpo, e,
apoiada num cotovelo, olhou para o pente durante alguns instantes curtos; depois
retirou os olhos; tinha-se dominado. Então, eu lancei-lhe as mãos aos cabelos,
coligi-os, enlacei-os à pressa, improvisei um toucado, sem nenhum alinho, e
rematei-o com o pente de diamantes; recuei, tornei a aproximar-me, corrigi-lhe
as madeixas, abaixei-as de um lado, busquei alguma simetria naquela desordem,
tudo com uma minuciosidade e um carinho de mãe.
– Pronto – disse eu.
– Doudo! – Foi a sua primeira resposta.
A segunda foi puxar-me para si, e
pagar-me o sacrifício com um beijo, o mais ardente de todos. Depois tirou o
pente, admirou muito a matéria e o lavor, olhando a espaços para mim, e
abanando a cabeça com um ar de repreensão:
– Ora você! – dizia.
– Vens comigo?
Marcela refletiu um instante. Não
gostei da expressão com que passeava os olhos de mim para a parede, e da parede
para a joia; mas toda a má impressão se desvaneceu, quando ela me respondeu
resolutamente:
– Vou. Quando embarcas?
– Daqui a dous ou três dias.
– Vou.
Agradeci-lho de joelhos. Tinha achado a
minha Marcela dos primeiros dias, e disse-lho; ela sorriu, e foi guardar a
joia, enquanto eu descia a escada.
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