Sexta-feira da semana passada

 

Hoje tem Sexta-feira da semana passada (Arte & Letra, 2018), do Manoel Carlos Karam:

Algum(a) leitor(a) pode dizer que este livro trata de(o) nada, de assunto nenhum – e talvez (aparentemente) haja alguma razão no comentário levando em consideração o seguinte fragmento:

“As quatro cervejas me deixaram sonolento e com vontade de mijar. Por favor, puxe a descarga. Permitido carga e descarga das 7 às 9,30 horas. O poste dividiu o ônibus em dois veículos distintos. Distinto público, muito boa noite.”

É, no entanto, possível identificar conexão no fragmento transcrito, o puxar a descarga conversa com a frase seguinte, “carga e descarga”, da mesma maneira que os veículos distintos dialogam com o público distinto.

Ler, reler a ficção do Manoel Carlos Karam (1947-2007) provoca surpresa, ainda mais se quem realiza a leitura tem disposição para admirar as sutilezas e demais recursos que as narrativas dele contêm.

Já outra voz (também) poderia afirmar que Sexta-feira da semana passada, na realidade, deve ter como título As desventuras [ou não aventuras] de Carlos Mel, e tal afirmação tem lá a sua lógica, uma vez que a narrativa tem início com o protagonista pedindo a conta, e o desfecho traz a seguinte frase:

“Carlos Mel foi algemado e preso por não colaborar com a limpeza da cidade.”

Mas, é importante argumentar, Sexta-feira da semana passada trata de vários, muitos temas, especialmente a escrita: o livro é um elogio à literatura.

Publicada 11 anos após a partida do Karam, a obra traz alguns fragmentos (talvez todos) notáveis, mas vou citar um, em que é possível perceber a astúcia do narrador detalhando o processo de escrita e reescrita (do acaso também – é uma aula sobre o fazer literário):

“Sanduíche sem pão não é sanduíche. Riscou a frase com tanta força que rasgou o papel. Arrancou a página do caderninho, fez uma bola e jogou pela porta do bar. Caiu lá fora, quase na sarjeta. Começou a escrever novamente. A porta de aço do bar é forte. O caixa do bar é forte. O dono do bar é forte. Todos os fregueses do bar são fortes. Eu sou forte. Esta cerveja é forte. Riscou a palavra esta e colocou apenas a. Olhou cauteloso para o que havia escrito”. 

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