Noite sem fim
Em 2019, o
Fábio Campana publicou As coisas simples.
Li, reli a obra e escrevi um texto, "Noite sem
fim", sobre o livro de poemas, contemplando também aspectos de outras obras
do autor que partiu em 29 de maio de 2021, às 19h30.
A escuridão,
que evidentemente tem o seu contraponto na existência da luminosidade, a
escuridão assim compreendida e, detalhe, arquitetada é o que conduz a produção
literária e poética de Fábio Campana ao longo de décadas. Seja em narrativa
longa, Ai (2007), nos contos de Todo o sangue (2004) ou em poemas, por
exemplo, no recém-publicado As coisas
simples (2019), Campana
enfrenta o escuro (insisto, apesar da luz) e, em tal situação, apresenta
imagens, cenas e narrativas sobre questões humanas.
É possível
supor, e isso é mera suposição, que Fábio Campana em seu percurso criativo
tenha como leitmotiv o poema “Lagoa”, publicado em Alguma
poesia (1930), o
primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade. No texto, a voz poética afirma
que, apesar do mar, que pode ser bonito e até bravo, não importa, “eu vi a
lagoa”. Há, inclusive, insistência: “Eu não vi o mar./ Eu vi a lagoa…”.
Em diálogo com
a essa oposição drummondiana lagoa-mar, Fábio Campana deliberadamente minimiza
em sua produção poética e literária o que há de solar, suave e fácil na
existência. Narrativas e poemas do autor, em sintonia com a tradição e vozes
contemporâneas, têm como matéria-prima o conflito, o que abre espaço, por
exemplo, para o mote de Manuel Bandeira da vida que poderia ter sido e não foi.
Em As coisas
simples, Campana revisita a questão a partir de um recorrente personagem
infantil que perde tudo, da inocência às ilusões, como está sinalizado no poema
que empresta o nome ao livro: “O menino, aquele, que ensaiou papéis de herói,/
já não existe. Morreu com as utopias e os pequenos deuses/ inventados no ano da
iconoclastia”.
O personagem
infantil, presente em obras anteriores do autor, também aparece em outros
textos de As coisas
simples, em alguns casos com mais idade, como no segundo poema, “Écogla”: “Um
dia eu era jovem e tinha a vocação dos rios,/ desejo intenso de chegar ao mar”.
A partir desse menino/jovem, Fábio Campana compõe um painel sombrio (ressalto,
apesar da existência da luz), em que a vocalização é feita por sujeitos que,
como a maioria dos humanos, perderam muito, sempre algo irreversível: é o dia
(com sua luminosidade) que desmorona (“Dia que não termina”) ou os amigos
(possível luz da jornada) que partiram (“Ausências”).
A perspectiva
do fim da existência (noite sem fim, talvez ausência total de luz) é outro mote
que dá o tom de não poucos poemas de As coisas simples, como “Fim de comédia”, “Tempo” e
“Preparativos”: “Espero morrer com dignidade,/ despido de ruídos,/ sem a sombra
dos teus gritos.// Altivo, horizontal, ereto./ Solene, banhado e maquiado/ Sob
as pálpebras do tempo.// No bolso esquerdo, o corpo de um poema”.
O breu
construído por meio de linguagem por Campana também tem alguns hiatos, estações
de luz, viabilizados pela evocação do amor e das paixões, com seus encontros e
desencontros em variadas nuances. Um dos pontos altos do livro é, justamente,
um melancólico poema sobre o desejo, que traz no título referência às artes
visuais, outra obsessão do autor, “Gravura de Segall”: “Talvez um dia eu
desperte/ com o som dos pássaros/ sobre meus olhos,/ sobre minha garganta,/ e
volte a encontrar a mulher/ de coxas firmes, abertas,/ que me olhou em um café/
com a placidez imperturbável,/ e a elegância distante/ das prostitutas negras/
nas gravuras de Segall”.
O primeiro
verso do poema “Pequeno deus” traz uma provável chave, não necessariamente para
decifrar, mas, para ler a obra de Campana: “A noite é minha pátria”. E nessa
noite-pátria, elaborada há décadas com versos, parágrafos, contos e romances,
Fábio Campana – paradoxalmente – joga luzes no nonsense do cotidiano, na falta
de sol de temporadas existenciais consideradas perdidas e ainda ilumina com
poemas, por que não?, esses dias e noites definidos por não poucos como
sombrios, soturnos e quase inabitáveis.
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