Homem bom
Rodrigo decide tornar-se um homem bom.
Telefona para o consultório do doutor Fonseca, só tem
vaga no fim do mês. Confirma a consulta – esperar três semanas, Rodrigo acredita,
não é ruim para quem sofre por décadas.
São 11h49, se de um dia 3, 8, 12 ou 13, tanto faz.
O problema, para Rodrigo, é o horário: são 11h50.
Um dos piores momentos, para ele, é a véspera do
almoço. Não sabe se é fome ou iminência de ingerir alimentos, ansiedade
exagerada, outra causa desconhecida, mas, enfim, às 11h50 o corpo manifesta
algo que Rodrigo não controla – pretende contar isso ao médico.
Corta um pedaço de alcatra, faz bifes, e enquanto
fatia a carne planeja dar socos na cara do Cupincha, até o sujeito que o
sacaneou recentemente cair.
Ontem mastigava macarrão com molho à bolonhesa e bebia
vinho visualizando o cérebro da Manjubinha despedaçado.
Semana passada, quando um garçom ofereceu coração,
desejou que o Encalhe estivesse fatiado em um espeto. A Compartilhada poderia
ser um dos frangos de um assador rotativo. Sushis ficariam perfeitos em cima do
corpo da Sem Sex Appeal já em decomposição.
Mas, Rodrigo anota em um caderno, ele não planeja comer
adversários e inimigos. Pensa, sem escrever, que talvez nunca tenha cogitado
devorar oponentes – nem se fosse para adquirir a força de quem o prejudica,
não, possivelmente não experimentaria a carne deles – sente nojo e despreza os
desafetos.
Todo dia durante o almoço Rodrigo lembra de
situações em que colegas e conhecidos o prejudicaram. Escreve no caderno que
não são imagens, mas sensações – é isso, ele sublinha e repete – sensações
desconfortáveis habitam o seu imaginário durante as refeições do meio-dia.
Rodrigo quer pedir ao médico um remédio de efeito
instantâneo, pílula para ingerir e em segundos acabar ou reduzir o problema.
O doutor Fonseca possivelmente conhece o que pode combater
e anular esse mal. Para Rodrigo é importante que o médico esteja sóbrio no consultório,
dizem que ele bebe – muito. Rodrigo sabe que não tem nada a ver com a doença do
Fonseca, só deseja a dose certa de medicação.
Mas o dia da consulta está distante, e Rodrigo não
consegue evitar a sensação desconfortável. O desconforto, analisa, e registra
em um caderno, é sentir desejo de se vingar de quem o prejudicou.
Escreve, para depois rasgar a página, que esquece
ou sublima o desconforto enquanto está no trabalho – “as tarefas me absorvem”, isso
ele anota, sublinhando a frase.
À noite, em casa, outras tarefas, especialmente as
séries conduzem a atenção Rodrigo para questões diversas das que ele pensa e
sente na véspera e durante o almoço.
Rodrigo acorda e, por segundos, não sabe se
transformou as sensações em ação. Deitado, olha o teto, branco, um inseto se
movimenta, e diz para si mesmo que o enredo recente, ele espancando o
Cachorrinho do Conselheiro Acácio do Século 21, poderia não ser apenas fragmento
de sonho.
Levanta, pega um chinelo, sobe na cama e começa a
bater, com o chinelo, no inseto. Mas não é inseto, talvez seja um pequeno
réptil. Ou, não tem certeza, pássaro.
O inseto, réptil ou pássaro é esmagado, e Rodrigo
continua batendo contra o que restou, quase líquido e pouco sólido, de um
inseto, réptil ou pássaro.
Meu conto inédito publicado hoje, 21 de dezembro de 2020, na Ideias com ilustração do Vitor Mann.
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