Narrativas em chave de tensão
Das
teorias conhecidas sobre o conto (Borges, Cortázar, Piglia, Todorov, etc e
etc), nenhuma consegue se comparar em pragmatismo e precisão quanto a análise
construída pelo querido e saudoso escritor sergipano Antonio Carlos Viana. Em
entrevista ao jornal Cândido, em abril de 2015, um dos nossos melhores
contistas decodifica, a seu modo, a engenharia do gênero, em resposta à escolha
pelo rigor e pelo padrão sintético em sua literatura:
Para mim, a teoria do conto é muito simples: ele
precisa ter unidade de tempo, espaço e ação. Porque se você começar a dispersar
muito a ação, o conto perde o que para mim é muito importante, que é a ação. A
tensão tem que ser mantida a todo custo. Sempre digo que o contista não deve
fazer o leitor respirar muito. Respira no começo e só solta o ar no final. Que
ele seja levado pela força da linguagem. Por isso acho que o conto precisa ter,
no máximo, seis páginas. Tudo que não for essencial, deve ser eliminado. A
palavra certa é cortar. Quero que o leitor seja arrastado por um conflito, e
tudo que não fizer parte desse conflito, é cortado.
É
preciso atentar-se que, aqui, Viana não se refere ao ritmo, e sim ao andamento
narrativo. Um ritmo frenético não necessariamente produz um nível ideal de
ação. A ação se estabelece na maneira como a narrativa toma seus caminhos,
sempre guiada pelo conflito em chave de tensão. Por isso, os mineiros Rubem
Fonseca e Murilo Rubião são autores tão distintos no modo como desenvolvem seus
estilos de escrita, porém únicos em “segurar o fôlego do leitor” na articulação
de suas histórias.
Com
uma carreira dedicada ao conto, Marcio Renato dos Santos se mostra um atento
seguidor da cartilha de Viana. A cor do
presente, sua oitava e recente antologia, formula-se a partir da
concentração dos componentes narrativos num circuito seguro de frases, que
retém a tensão em seus limites estruturais.
O
enredo ajusta seu elo magnético aos avanços de um elemento condutor, ou de um
personagem, ou de uma circunstância em ocorrência, cultivando o fluxo em
crescente envolvimento, ainda que (em alguns casos) a trama rume para planos
oníricos ou beba do nonsense.
Não
é uma tarefa fácil, sem parecer mera digressão ou perda de controle. Mas o
autor se sai bem. Vide “Comfortably numb”, texto que abre o livro.
Diversificações entre
personagens e temas
O
protagonista é Luciano, um músico levado a um hospital, depois de ser atingido
por um pedaço de marquise. À medida que o fato se distende, o conto vai se
preenchendo de personagens que atraem o foco narrativo momentaneamente para si,
a moda de um trânsito orbital de mininarrativas.
Com
isso, a premissa se expande, abrange referências musicais e cacos de memória,
contudo a ação nunca esfria porque seu ponto de tensão está no protagonista, ao
exemplo de uma linha principal que se ramifica em trechos que levam a essa
mesma linha principal.
Marcio
Renato inclui, em seu compasso discursivo, o aspecto da duração, por meio de
orações bem marcadas, variações ligeiras e um sentido aleatório de urgência. O
conto seguinte, “Seria”, é um primor no que se refere a esse tratamento
técnico. Um convite frugal para um happy hour com um casal de conhecidos
degringola num encadeamento de cenas no qual a realidade deixa de fazer sentido,
até se configurar uma situação bizarra e intangível.
É
interessante notar como o autor usa o nome do protagonista de forma reiterada,
de modo a demarcar o espaço-tempo.
“No
corpo do sonho”, a melhor narrativa, flerta com as histórias de detetive, ao
tratar do desaparecimento de belas mulheres de 40 anos, criando um mote
investigativo que se desmonta ao assalto do gênero fantástico, fazendo
referência direta a Murilo Rubião. “A cor do presente”, por sua vez, sequer
sugere a realidade, construindo-se numa forma de representação do estranhamento
social, que combina influências de Margaret Atwood e de Lewis Caroll.
“Eterna”
e “Sweet Jane” seguem nessa mesma linha de transgressão da normalidade,
interagindo seus enredos com nuances que se filiam a uma chave insólita de
decifrar a vida. Também fica claro o interesse em compor uma galeria de
diversos personagens, colocando-os em contato com circunstâncias que geram
conflitos.
Novos ingredientes em ponto
de tensão
É
o caso da dupla “Subúrbios” e “Inconveniente”. Enquanto o primeiro conto se
desenvolve no introverso de uma mulher às voltas com o passado, o segundo trata
de um indivíduo assediado por um importuno falsificador. Marcio Renato mantém o
eixo de tensão na amarra precisa das frases, no entanto cede espaço para
ingredientes novos se mesclarem a esse compósito de recortes do real e de
versões surreais da realidade, a exemplo do sexo, da ironia e do humor.
O
livro, inclusive, encerra-se com o dilema de um jogador de futebol pressionado
a tomar uma decisão, cuja negativa pode resultar num castigo bizarro.
Por
conta da sólida construção estrutural e da dinâmica aplicada à linguagem, A cor do presente se confirma um dos
trabalhos mais concisos do autor curitibano. Uma série de episódios centrados
nas relações humanas, entre personagens distintos, em situações distintas, mas
que nunca afrouxa sua linha narrativa, nunca, como ensina o mestre Antonio
Carlos Viana, deixa a ação se dispersar.
O
mais importante é a ação. Está aí o nocaute do conto.
Texto
de Sérgio Tavares publicado em A Nova Crítica.
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