Um episódio na ex-quinta comarca



         O Coronel passa ao lado de Moe, Larry e Curly, e nenhum deles diz oi, bom dia ou como vai? Eles talvez nem tenham percebido a presença do Coronel que, há onze anos, saiu de cena. Perdeu trinta quilos e parte do cabelo. Hoje, ele usa tênis de corrida, calça jeans, camiseta e um casaco preto. Anteriormente, paletó e sapatos italianos eram o uniforme do Coronel, pelo menos no ambiente de trabalho. Mas as sobrancelhas pretas, os olhos verdes e o olhar, atento, são os mesmos do sujeito que, anteriormente, distribuía ordens, dinheiro, determinava o presente, reescrevia o passado e inventou o futuro para a Tulipas Negras, empresa que seu pai fundou e que ele, Coronel, transformou em um empreendimento lucrativo.
         Se Moe, Larry e Curly não perceberam a presença do Coronel, ele observou com atenção o trio. Ao caminhar por uma rua com pouco movimento, o Coronel analisa que os três envelheceram, mas fisicamente não mudaram tanto desde o tempo em que ele frequentava a empresa. Nos últimos quatro, cinco anos, o Coronel acompanhou as postagens deles no Facebook e, mesmo que por meio de uma análise superficial, não encontrou tantas diferenças entre o que Moe, Larry e Curly demonstravam ser e o que ainda querem demonstrar que são via internet: consumidores de tendência, de produtos eletrônicos à gastronomia.
         Apesar de serem o que são, esses três sujeitos podem ser úteis ao Coronel. Ele está em busca de uma oportunidade para rever Rosa. O Coronel e Rosa foram casados e, desde que ele desapareceu, nunca mais viu a mulher, a não ser por meio de fotos publicadas em jornais e revistas. O Coronel já nem lembra de que maneira ficou sabendo que Rosa casou com um sujeito chamado Gerraud. Em seguida, o novo marido começou a trabalhar na Tulipas Negras. Já Moe, Larry e Curly foram promovidos, de gerentes, a sócios.
         O Coronel está na praça Mez da Grippe e tem a sensação de ter entrado em um set de filmagem do neo-realismo italiano. Há dezenas de miseráveis. Na última vez em que esteve no local, havia poucos mendigos. Agora, o Coronel caminha e não sabe de onde surgiram tantas pessoas mal vestidas, sujas e que estendem as mãos pedindo ajuda. 
           É necessário seguir, ainda, por quatro quadras até o escritório do advogado Deville.
         O Coronel vai caminhando, passou apenas a primeira quadra e já foi abordado por três ou quatro pessoas. Há cheiro de urina e fezes na região. Mendigos estão deitados em portas fechadas, onde anteriormente funcionavam lojas que vendiam discos, livros, canetas, jóias, perfumes e outros produtos. Há pessoas deitadas, enroladas em cobertores, nos pontos de ônibus. Vendedores ambulantes, de comida e de roupas, também ocupam parte das calçadas, onde ciclistas disputam o fluxo com pedestres, entre os quais, o Coronel.
         Uma nova cidade se sobrepôs àquela em que ele nasceu e cresceu. Na principal avenida, quase só tem farmácias, igrejas e pontos que comercializam produtos chineses e comida feita para ser consumida rapidamente em troca de poucos reais.
         Mas tudo se transforma, até onde o Coronel passou os últimos onze anos. A vila de pescadores tinha quase duzentos habitantes quando ele chegou e mais de cinco mil pessoas já superlotavam o local nos últimos dias antes do Coronel retornar à cidade. Aqui mesmo, por onde ele anda agora, havia transformações operadas sutilmente, mas de efeito irreversível. Casas e prédios demolidos, empresas aparentemente eternas encerraram as atividades, pessoas que o Coronel imaginava que continuariam na cidade por tempo indeterminado, elas também saíram de cena. Só a chuva, a garoa e o cinza no céu na maior parte do ano continuaram e continuam, hoje inclusive.
         Falta uma quadra para o Coronel chegar ao escritório do advogado Deville e a proximidade representa alívio. O trajeto foi tenso. Ele teve a impressão de que seis ou sete sujeitos quase o assaltaram. Quase porque o Coronel fechou a cara, os punhos e, em uma situação, levantou o casaco, revelando que está com uma pistola.
          O Coronel agendou reunião com Deville, mas usou outro nome, Ulisses, como se fosse um novo cliente em busca de assessoria jurídica. Ao entrar na sala de Deville, o Coronel pergunta como vai?, e o advogado responde tudo bem. Após comentários sobre o tempo, a impossibilidade de caminhar relaxado pelas ruas e algumas notícias divulgadas recentemente, como reformas e protestos, eles ficam em silêncio por alguns segundos.
         — Você ainda não me reconheceu?
         — Desculpe.
         — Deville, não acredito!
         — Ulisses, o seu nome não me é estranho.
         — Meu nome não é Ulisses.
         — Não?
         — Não.
         — Mas aqui está escrito.
         — Não vale o que está escrito.
         — Como?
         — Deville, sou eu.
         — Não...
         — Sou eu.
         — Eu?
         — O Coronel.
         Inicialmente, o advogado diz não acreditar, mas o Coronel cita informações sobre a Tulipas Negras, mencionando processos para os quais Deville foi contratado, entre outros fatos em que ambos estiveram envolvidos.
         — Deville, você tem notícias da Rosa?
         — Tenho.
         — Como ela está?
         — Encantadora, como sempre esteve.
         O Coronel fica em silêncio, Deville também. Por alguns minutos, os dois permanecem sem emitir nenhuma palavra, mas se observam, até que o celular do advogado toca, ele olha o visor e deixa o aparelho em cima da mesa.
         — Exatamente, o que você quer?
         — Bom...
         — Coronel, ainda não sei o que você pretende.
         — Se eu te disser, talvez você não acredite.
         — Tente.
         — Ainda não sei exatamente o que eu quero.
         — Não?
         — Não.
         — Neste caso, não posso ajudar.
         O Coronel comenta que gostaria de retomar a própria vida, a empresa e o casamento. O advogado diz que, depois que ele desapareceu, quase tudo mudou. Deville salienta que a esposa do Coronel sofreu com a ausência do marido em um primeiro momento, mas então Gerraud entrou em cena, consolou Rosa e, em seguida, eles casaram.
         Deville também conta que continua trabalhando para a Tulipas Negras e que, já faz algum tempo, o nome do Coronel não é mais envolvido em nenhuma operação. O Coronel olha para o advogado que, lentamente, diz que Gerraud é o todo-poderoso, mas quem aparece à frente do negócio são três funcionários, Moe, Larry e Curly, sócios ou supostos sócios da Tulipas.
         O Coronel repete que pretende retomar a empresa e o casamento com Rosa, e Deville diz que o desejo do amigo não é algo simples de ser realizado.
         — Vou até o fim.
         — Coronel, você desapareceu e tem gente que te considera morto.
         — Mas eu estou aqui, porra.
         — Tudo bem, mas a Rosa e a Tulipas Negras, vamos dizer, se reinventaram na sua ausência.
         — Mas elas são minhas.
         — As coisas mudaram, meu amigo.
         — Deville, deixe eu te dizer uma coisa.
         — Por favor.
         — Faço acordo até com o diabo, se for necessário.
         — Pra quê?
         — Pra retomar o que é meu.
        

        Deville olha um quadro em que há uma figuração abstrata, atrás do qual tem uma câmera e um microfone captando  imagem e som. Ele pisca o olho direito. A algumas quadras dali, Gerraud, Rosa, Moe, Larry, Curly e outros funcionários da Tulipas Negras acompanham a conversa entre o advogado e o Coronel.
         O Coronel diz que gostaria de fazer uma proposta, Deville pergunta se ele quer beber algo, vinho, uísque, café ou refrigerante, mas o Coronel agradece e recusa.
         — Proponho o teste do arco tenso.
         — O quê?
         — Tenho um arco, que a Rosa ainda deve guardar.
         — E o que isso...
         — Deville, somente eu sabia manejar o arco.
         — E o que você está sugerindo?
         — Um desafio.
         — Com quem?
         — Com o Gerraud.
         — Qual o objetivo?
       — Quem conseguir manejar o arco, fica com a Rosa. E com a Tulipas Negras.
        Deville recebe uma mensagem no celular, confere o conteúdo e pede licença, precisa sair e, de fato, sai. Um sujeito que está no corredor, o Angel, entra no escritório e fecha a porta. O Coronel sorri, Angel também e, sorrindo, puxa uma pistola, que estava escondida dentro do sobretudo.
         — Isso é pra você.
         Angel disse a frase antes de disparar um tiro na cabeça e outro no coração do Coronel, que começa a cair da cadeira, com uma das mãos na pistola que estava escondida embaixo do casaco e, a partir de então, daqui a no máximo sete horas, ele vai desaparecer — para sempre, para nunca mais.


Conto publicado originalmente em A certeza das coisas impossíveis [Tulipas Negras, 2018], meu sétimo livro de narrativas.

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