É um táxi que chega inesperadamente
A Rua XV é um
palco iluminado. Não! Não é isso que pretendo dizer. A Rua XV é
mais. A Rua XV é uma passarela rumo ao infinito. Isso. Agora sim.
Acertei uma frase, ganhei o dia. Já posso entrar no Face e começar
a dar likes nas postagens dos meus amigos, os escritores. Ah, nós,
os escritores. Que vida!
É importante dar
likes nos posts dos amigos, mas, sabe, estou com uma vontade de
passear. Sentir o movimento da cidade.
Boa ideia!
Vou colocar o meu
manja, o meu novo Ray-Ban, e sair pela Rua XV. Daí, posso olhar tudo
e todos sem dar muito na cara que estou manjando. Coisa boa o óculos
escuro. Bela invenção da humanidade!
Mas, ultimamente,
estou mesmo manjando aves. Outro dia, até escrevi sobre isso. Todos
param na praça, olhando pra cima e o que é?, o que é?, quem é?,
quem é?
— Raimundo
Nonato!
Não. Isso não
funciona. Preciso fazer um texto sem gracinha. Assim, não pega bem.
Nós, os
escritores, pensamos em coisas sérias.
E, como eu ia
dizendo, estou de olho em aves.
Beija-flor,
gaivota, urubu, corruíra, jacu, pintagol, sabiá, pardal,
balança-rabo, canário, coleirinho, tiziu, sanhaço, caturrita,
araraponga, rola, pomba-rola e, principalmente, rolinhas.
Aqui na cidade, em
plena selva de pedra, consigo observar pássaros.
Se não fosse
escritor, seria ornitólogo. Boa, outra frase pruma crônica: se não
fosse escritor, seria ornitólogo!
Mas a vida me fez
escritor.
Que coisa, hein?
Sou, digamos, um
catalogador de acasos. Outra frase inspirada, até mesmo título,
pruma crônica autobiográfica: catalogador de acasos. Só que não
apenas catalogo, eu edito. Isso. Sou um editor de acasos! Outra frase
matadora: o escritor é um editor de acasos!
Estou inspirado,
coisa boa.
Na realidade, sou
inspirado. Vivo inspirado. Sabe, nós, os escritores, somos, mais que
inspirados, uns iluminados!
Por falar em luz,
adoro um palco. E qual escritor não gosta? Nem todos confessam, mas
nós, os escritores, somos uns vaidosos.
Agora, já estou na
Rua XV.
Que rua, que lugar!
Caminho, já andei
alguns passos, mas, curioso!, ninguém me reconhece. Deve ser por
causa do óculos. Sim. Só pode ser por causa desses óculos.
E então? Será que
guardo no bolso?
Melhor não. Sem o
óculos, não vou mais poder manjar à vontade. E aqui na Rua XV tem
tanta gente e tanta coisa pra ver.
Sigo num trecho
onde, no passado, funcionavam cinemas e cafés. Hoje tem,
principalmente, fast-food e lojas de roupa.
Passa muita gente
neste lugar, ninguém olha pra mim, até parece que sou invisível.
Mas, na realidade, acontece outra coisa.
Fingem não notar
minha presença pra eu poder circular à vontade!
Posso ir e vir sem
ser assediado. Que beleza! Que privilégio.
Entro numa
livraria. Vou até a estante onde, faz sete meses, colocaram quatro
exemplares do meu livro mais recente. Encontro, quase no mesmo lugar,
os mesmos quatro exemplares. Mais de meio ano e ninguém se
interessou. Como pode?
Mas, desconfio, a
situação é outra!
Os vendedores não
deixam meus livros saírem da loja. É pra manter a minha presença
no local por meio da presença física das obras que escrevi.
Ah, nós, os
escritores! Somos mesmo muito protegidos!
Não fossem os
amigos vendedores, meus livros já teriam sido vendidos e, se uma
pessoa entrasse hoje na loja, não encontraria nenhum exemplar. Coisa
boa!
Acho que vou entrar
naquela agência bancária e conferir meu saldo. Numa dessas, faço
um saque e sigo pela rua com dinheiro na carteira.
Nós, os
escritores, não precisamos trabalhar, pelo menos não da maneira
tradicional.
Por isso, é
possível entrar num banco fora do horário de pico, agora, às
15h49, quando a maior parte dos trabalhadores está nos escritórios,
nas fábricas, nas lojas, cumprindo as oito horas diárias.
Não, não vou
entrar no banco. Prefiro seguir, parar num outro banco, desses de
sentar, e não fazer nada. Posso não fazer nada. É um privilégio,
uma conquista, a vantagem de ser escritor.
Sabe, a
matéria-prima do escritor é o impalpável.
Que frase! Preciso
lembrar e incluir isso numa crônica.
Nós, os
escritores, produzimos textos pra jornais e revistas.
É um conteúdo
fundamental para a imprensa. Sem dúvida, bem mais importante que as
notícias, as fotos e as outras informações.
É a palavra,
escrita e impressa, de nós, os escritores, o que, no fundo, garante
a verdadeira credibilidade dos veículos de comunicação.
Ah, nós, os
escritores!
Somos os
responsáveis por elaborar os pilares invisíveis do tempo em que
vivemos.
Outra bela frase!
Nós, os
escritores, também ganhamos dinheiro ensinando escrever. Curso de
criação literária é uma fonte de renda.
Mas, preciso
confessar, acho esses eventos entediantes.
Tem uns que entram
só pra fazer contato, outros por não ter ocupação. A maior parte
precisa de noções gerais do idioma e há uma quantidade, maior do
que se imagina, a fim apenas de namorar, principalmente, o professor.
Bom, se os alunos
lessem, tudo seria mais fácil, mas poucos estão interessados em
leitura.
Prefiro participar
de mesas de bate-papo. O público desses eventos literários está
mais a fim de ver do que ouvir o escritor. E basta enunciar seis,
sete frases, até menos, que o cachê está garantido.
Ah, nós, os
escritores, somos, realmente, uns privilegiados!
Nesses encontros,
chego com algumas frases que valem pra qualquer tema.
Por exemplo, vou
pensar em uma.
Vamos lá, vamos
lá, vamos lá. Já sai, está saindo Daqui a pouco sai. Opa, estou
quase lá. Já vai. Deu.
— É um táxi que
chega inesperadamente.
Com essa frase, é
um táxi que chega inesperadamente, posso responder praticamente
qualquer pergunta.
Se me perguntam o
que é a vida?, respondo: é um táxi que chega inesperadamente.
Posso usar a frase
pra definir o que é a morte, o amor ou a inspiração pra escrever:
é um táxi que chega inesperadamente.
Maravilha!
Vou anotar essa
frase: é um táxi que chega inesperadamente.
Numa dessas, uso
pra finalizar algum texto, qualquer um.
Ou coloco no
título.
[Conto publicado no meu quinto livro de contos, Finalmente hoje, pela Tulipas Negras, já em 31 de março de 2016].
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