A consagração de Golegolegolegolegah!
O escritor, doutor em Letras e professor da UFPR Paulo Venturelli (na foto acima) leu o meu segundo livro de contos, Golegolegolegolegah!, publicado em março deste ano (2013) pela Travessa dos Editores. Venturelli escreveu uma resenha, publicada em seu site, consagrando o livro. É uma ampla, profunda e surpreendente reflexão a respeito de um livro de contos. Eis a resenha:
GOLEGOLEGOLEGOLEGAH!
Marcio Renato dos Santos
Travessa dos Editores – 73 p.
No "Decálogo do perfeito contista",
Horácio Quiroga determina no oitavo "mandamento" e no nono:
8. Toma teus personagens pela mão e leva-os
firmemente até o final, sem atentar senão para o caminho que traçaste. Não te
distrai vendo o que eles não podem ver ou o que não lhes importa. Não abusa do
leitor. Um conto é uma novela depurada de excessos. Considera isto uma
verdade absoluta, ainda que não o seja.
9. Não escreve sob o império da emoção.
Deixa-a morrer, depois a revive. Se és capaz de revivê-la tal como a viveste,
chegaste, na arte, à metade do caminho.
Pois é isto que Marcio Renato dos Santos faz
em seu recente Golegolegolegolegah! Ele toma as rédeas dos personagens e leva-os firmemente até onde quer,
com perfeito domínio da arte de criar alguém vivo e conduzi-lo com expertise,
dando-lhe vida pulsante e convincente.
Ao mesmo tempo, o
autor não se deixa levar pela emoção. Os contos são calculados para aquele
efeito único que é o objetivo do conto, segundo Poe. Depurados pela
lapidação verbal, as narrativas têm alta voltagem ao nos apresentar personagens
praticamente reduzidos a zero. Estes personagens parecem cimentados numa
condição imutável, para a qual não veem saída. É como se seu destino fora
traçado por deuses desconhecidos que lhes teriam lançado a maldição: fiquem
onde estão e não se atrevam a dar um passo à frente. Isolados, perdidos de si
mesmos, enfrentam o inferno de uma solidão áspera em que tudo conspira contra
eles. Felicidade? Não a atingem nem de longe. Desespero? São tão anu- lados por
seu cotidiano sombrio e massacrante que sequer se dão ao luxo de arrancar os
cabelos.
Protótipos de um
mundo esvaziado de sentido, um mundo que não tem mais lugar para o humano, um
mundo talhado na mornidão do não-sentido, eles chafurdam na vala comum dos
escrotos que se perderam de si próprios e, principalmente, do outro. O outro
pode, às vezes, ser um fantasma, mas não tem referencialidade substantiva para
lhes dar o suporte de uma interação viva, complexa, na indefinição de toda
convivência.
É claro que hoje em
dia vivemos todos à mercê e ao redor de nosso umbigo. Os personagens de Marcio
Renato dos Santos levam isto ao extremo. Não saem de casa, não conhecem a
cidade onde moram, muito menos as suas ruas, seus bares, seus restaurantes. E
quando saem, não passam de autômatos numa prática existencial engessada num
nada corrosivo que os leva sempre a becos sem saída.
Triviais e
anônimos, desqualificados e de baixa extração (mesmo quando têm dinheiro, cuja
origem é sempre indeterminada), eles levam uma vida ao rés do chão, porque lhes
falta um projeto existencial, lhes sobra uma nulidade acachapante em que estão
sozinhos perante o próprio ato de existir. Se se olham no espelho, não se
reconhe- cem porque seus traços foram diluídos e devorados pela trivialidade de
seu rastejamento na vala dos comuns mortais, em que tons de personalidade
deixaram de existir.
Plenos das mazelas
mais triviais, eles sequer têm um nome próprio, com exceção de Zé Ruela. Este,
mais que nome, tem uma série de apelidos que o desqualificam e o jogam à margem
de uma existência tranquila no bairro em que mora. Afinal, é o louquinho do
lugar, mais soterrado que respirando o ar de todos.
Vamos dar uma
olhada, ainda que rápida, em cada conto que compõe o livro:
"Golegolegolegolegah!"
— um título que é uma longa onomatopeia para a rarefação do
personagem-narrador. Este fulano abandonou sua cidade natal que era dominada
por uma família de tiranos que controlava a todos. Mudou-se para Goiânia. Mas
pode ser também Maringá, Florianópolis, Caxias do sul ou Campinas. Ele não vê
diferença de um lugar para o outro. Enquanto narra, tem consciência da sua
função e interrompe o ato de escrever várias vezes para cuidar de trivialidades,
como beber um copo d´água. E não tem muita certeza do ponto em que deve
terminar a narrativa. E o texto que ele escreve, o vem fazendo há anos:
escreve, apaga, reescreve.
"Você tem à
disposição todas as cores, mas pode escolher o azul" — um título lírico,
afável para uma história em que o narrador-personagem não tem controle sobre
nada. É um obsessivo: precisa passar por um mesmo ponto da cidade, sem
definição geográfica. Até que certa vez o ônibus em que trafega tem uma pane e
ele é obrigado a descer. Completamente desorientado, não sabe em que local
está. Misturando fome e ansiedade, anda e desanda, sem saber onde ir. Até que
reconhece uma rua e, a partir daí, vai em busca daquele ponto que
automaticamente o chama: a passarela, a ruela, a viela, o canal, o posto que é
seu trampolim para o azul. Você pode escolher o azul? Não, o azul é impingido
como única condição possível, levando o leitor ao mesmo beco-sem-saída deste
narrador que perdeu todas as cartas de seu jogo.
"Digital
reverb delay" — um sujeito aparentemente normal. Mas não fala. Conformado.
Passou sete anos numa prisão e não teve garras para se defender contra o que é
acusado. Kafkiano, recebeu "dinheiros inesperados" e se instalou
diante do mar. Todavia, tem saudades dos dias ruins. A garganta está inflamada
por falta de uso. Grava suas falas para ouvi-las e refletir sobre "a sorte
de não ter despencado no precipício." Ele não despencou no precipício?
Claro que sim. A partir do momento que "perde" a linguagem, ele se
desumaniza, não tem mais uma interação possível com seus semelhantes e esta
anulação de sua humanidade — já que a linguagem faz o homem — é o voraz
precipício de sua nulidade. Ele é aquele que tenta se erguer puxando os
próprios cabelos ou tentando pular a própria sombra. E assim, está emparedado
numa condição sem pontes para o outro e, autocentrado, macera-se na gravação do
que diz, e sua reflexão é mais um ato de quem não é nem diante de si mesmo.
"Nevoeiro"
— outro fulano que ganha um bom dinheiro, sem que isto seja condição de viver
em plenitude. Costuma encontrar amigos mortos há mais de vinte anos. E nunca
tem certeza: é o amigo que revê ou é alguém parecido? A morte aqui tem sua presença
marcante como um contraponto ao raso existir de alguém que só sobrevive num dia
a dia repleto de nadas. O dinheiro virou mera moeda de troca que não disfarça
seu processo de alienação em que está embutido. Sem um objetivo para ser e
fazer, o escamoso cotidiano o sufoca e lhe cria a ilusão de ver rostos
conhecidos que podem não ser. Então o que de verdade acontece é que ele está no
interior de um labirinto de espelhos a refletir suas imagens indefinidas,
imagens de um homem que não tem rosto próprio e cai no auto-engano de pescar
possíveis referências nesta ilusão de ver quem pensa que vê.
"Zé
Ruela" — este é o louquinho das pernas fortes e dos braços finos. Costuma
correr pela cidade e em lugar de isto ser algo positivo, é fator de
desmerecimento diante da comunidade. Queria ter a profissão de mensageiro. O
que consegue é ser rotulado de Gasta Sola, Carpe o Pé, Serelepe, o Louquinho da
Rua, o Sem pausa. Louco manso, segundo sua própria concepção, tentou trabalhar
para distribuir panfletos de propaganda. Desanimado, jogou tudo no lixo e
perdeu o emprego. Sua dúvida: até quando a cidade vai permiti-lo andar por aí?
É o homo faber, molde do homo ludens que levou ao homo loquax
desistindo de seus atributos, não desenvolvendo nenhum potencial, por isto não
livre e um homem sem liberdade é o retrato de nossa sociedade em que nossos
papéis são programados por ideologias dominantes que nos reservam pouco espaço
de manobra na busca do ser.
"Cento e
noventa" — roupas e sapatos importados. O personagem come em bons
restaurantes. Porém, descobriu que o sucesso engorda. Morde-se porque um
conhecido tem prestígio como músico e ele não compartilha da opinião dos que
veem qualidade neste artista. Enfurece-se porque Fulano é tido como bom
escritor e, ele, claro, não concorda com tal ró- tudo. Pensa em usar parte de
seu dinheiro para demolir estes mitos. No fundo, um interesseiro cínico que
enganou e conseguiu subir na vida. No seu nada, percebe "que talvez
nenhuma palavra tenha importância como teve um dos primeiros sons que emiti e
ouvi: golegolegolegolegah!”
É preciso ressaltar
o imenso salto de qualidade e maturação que o autor deu de seu primeiro livro Minda-au para este Gole. Ganhou em técnica, em densidade, em
substância. Ganhou na precisão concisa de histórias que deitam e rolam na ironia.
Ainda que as situações se passem sem uma localização precisa e definida, não é fora
de propósito localizar estas histórias em Curitiba, com seus provincianismos,
suas panelinhas, sua autofagia melindrada diante de quem constrói alguma coisa
que o alça fora do comum.
Talvez, nos diversos contos, tenhamos sempre o
mesmo personagem. O importante é que o autor o(s) pegou pelas mãos e o(s) levou
com firmeza até onde queria, como prega Quiroga. E nos retratos secos, não há
emoção. Há a racionalidade de quem escreve com equilíbrio, traçando um caminho
de arquitetura textual muito bem pensado.
E não poderíamos deixar de dizer algumas
palavras sobre o livro enquanto produto editorial. Uma edição surpreendentemente
bela, dessas que fazem bem aos olhos e às mãos, rivalizando com as melhores
editoras do país. Um projeto de design gráfico de primeira linha de Marciel
Conrado, também responsável pelas sugestivas e intrigantes ilustrações.
É bom e salutar reconhecer (sem o
provincianismo citado antes) que Curitiba não é mais só uma promessa, porque já
tem um lastro de produção invejável em todas as artes, em especial na
literatura. É só dar uma espiada na publicação de tantos jovens autores que apareceram nestes
últimos anos.
A resenha também pode ser acessada diretamente por meio deste link.
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