Tudo pode dar certo

Durante anos nenhum avião decolou daquela cidade. Cacique, vocalista de banda indie, DJ, inventor de dificuldade que vende facilidade, pajé e poeta, muitos tentaram, mas ninguém encontrou explicação. Naquele ciclo inicial, de mais de cem anos, acreditava-se que havia redoma, campo magnético ou maldição que impedia voos para fora dos limites do povoado a mil metros acima do nível do mar.

Na pequena vila só havia espaço para um cacique, um vocalista de banda indie, um DJ, um inventor de dificuldade que vende facilidade, um pajé e um poeta. O direito de exercer cada atividade era hereditário e o reconhecimento dos personagens não ultrapassava os limites do vilarejo, onde a vida vingou, apesar das chuvas, da eventual neve e das baixas temperaturas.

Os acessos à vila que se tornou cidade estavam – em tese – fechados, e os forasteiros não eram recebidos com espumante, canapés nem sorriso no rosto. Ao contrário, dentes cerrados, cenhos franzidos e outras manifestações que poderiam ser lidas como gestos hostis, sistematicamente exibidas aos novos estrangeiros que ousassem tentar viver naquele planalto, garantiram àquele povoado o título de gente que não sorri.

Se inicialmente ninguém decifrou o mistério de ser e estar naquela aldeia, ninguém conseguiu negar, esconder ou abafar que aquele agrupamento humano tinha uma atração irresistível que, sabe-se lá como, se espalhou do leste ao norte.

Durante os nevoeiros, dezenas de migrantes pulavam os muros e outras centenas seguiam por túneis subterrâneos que eram abertos nas imediações do povoado e davam acesso a porões no setor histórico, especificamente, dentro da catedral. Após breve período na clandestinidade, os novos habitantes começavam a circular à luz do dia e, mesmo diante da resistência inicial, conseguiam se inserir na roda do cotidiano.

A presença de elementos estranhos foi o que deu início ao fim daquele ciclo inicial da cidade. E, futucando bem, nem poderia ser diferente. Os diferentes não são tão diferentes assim e, uma troca de olhares aqui, outra vontade de provar o gosto da maçã ali e plunct, plact, zum: o blues gerou o rock; o samba, a bossa nova, e novos filhos e frutos iriam surgir do contato entre os de lá e as de cá, e vice-versa, vire o disco, óquei óquei.

Mas a grande modificação naquele povoado seria provocada, ora direis, ouvir estrelas, por causa do aeroporto. Voos não decolavam e também não desciam. O filósofo do povoado disseminou uma tese segundo a qual o nevoeiro das manhãs era fabricado artificialmente por uma máquina, construída pelo instituto de inteligência local, com a finalidade de impedir que os nativos saíssem rumo a outros pontos.

Outra voz se levantou para dizer que o nevoeiro tinha como objetivo atrapalhar a descida de voos, o que não deixaria que forasteiros conhecessem as nativas, consideradas as mais belas, formosas e interessantes do planeta.

Pesquisadores, que trabalhavam no subsolo secreto, elaboraram uma engenhoca, o equipamento AGÁHÉLES, tecnologia de ponta, e o nó foi desatado. Alguns aviões caíram, houve perdas, cancelamentos, chamaram aquele período de caos aéreo, mas um dia, então, voos decolaram e aterrissaram sistematicamente naquela cidade.

Quando viajar de avião se tornou algo tão corriqueiro como dizer bom dia, aquela aldeia, finalmente, se integrou ao resto do mundo. Começou haver vaga para mais de uma pessoa exercer uma mesma profissão, e assim surgiram vários caciques, vocalistas de banda indie, DJs, inventores de dificuldade que vendem facilidade, pajés e poetas. O que era peculiar na região acabou por se extinguir, mas a cara amarrada de muitos do passado se transformou em sorriso permanente no rosto daqueles que se tornaram o povo do tempo presente.

Se isso aconteceu ou não, não sei; sei que recebi esse texto com um pedido, que transcrevo a seguir: “Caro Marcio, favor tentar publicar na revista Ideias, pode assinar, a autoria de um texto, todos sabem, é relativa – inclusive, se alguém te acusar ou reclamar de algo, conte logo, o texto não é seu, mas não deixe de tentar publicar, afinal, tudo isso, esse passado, não pode simplesmente sumir sem ao menos um registro.”

Crônica publicada na revista Ideias, da Travcssa dos Editores, edição de setembro de 2011.

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